agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

domingo, 30 de novembro de 2008

Parábolas do despedaçamento | avulso sobre Joaquim Manuel Magalhães

Recristalização / revisitação temática


O conceito de recristalização, a lenta transformação geológica dos minerais, haurido na esfera da mineralogia, é útil a propósito da obra de Joaquim Manuel Magalhães. Trata-se de uma metáfora operacional não só no que concerne ao cuidado na manutenção/transformação da obra já publicada (basta pensar na rescrita da sua obra em Alguns livros reunidos), mas também na reactualização dos temas e formas de os tratar. O conjunto de poemas publicados em O Independente, entre 21 de Julho de 2000 e 24 de Fevereiro de 2001, constituem uma revisitação de toda a sua obra anterior.

As preocupações com os avanços da tecnologia, com a ausência de uma ética, a crítica à pequenez, às falsas moralidades, a ruptura com a tradição, o acesso das massas ao(s) poder(es), isto é, conteúdos temáticos tratados na obra ensaística de Joaquim Manuel Magalhães são agora transformados / recristalizados em matéria poética

Nestes textos, não é só o outro que é o “quase” que gera frustração, mas tudo quanto o rodeia é matéria de desamor, de frustração. O progresso surge como uma violência. A morte, a doença e a velhice são presenças constantes que inspiram mais do que o terror, o nojo. O passado rural, a infância e a tradição vêem a sua importância amplificada, surgindo mitificados. Apesar de em outros momentos da seu percurso, já ter feito uso da palavra poética enquanto veículo de um discurso ensaístico (ver Um pouco da morte), nunca o fez de modo tão sistemático. Esta revisitação da sua obra anterior ganha contornos mais definidos, se tivermos em conta o espaço mediático onde os poemas são difundidos. Tendo em conta o volume de textos produzidos, Joaquim Manuel Magalhães teria matéria mais do que suficiente para optar pela publicação de mais um livro de poesia. O facto de preferir a publicação no espaço de um jornal é, sem dúvida, uma opção pensada.
Assim, no semanário O Independente, o efémero, que é o quotidiano informativo, dialoga como o poético que se quer intemporal. Joaquim Manuel Magalhães usa um espaço, perfeitamente delimitado numa secção, para revisitar temas que lhe são caros, para ajuizar sobre eles e para reflectir sobre os caminhos da poesia.
Trazer a poesia para o jornal / espaço público é uma provocação que resulta numa aporia. A palavra poética não consegue, ainda assim, deixar as margens.

Sendo a poesia entendida como uma arte aristocrática, destinada a “happy few”, a uma sensibilidade maior, bem formada e culta, trazê-la para um espaço público é disponibilizá-la a todas as sensibilidades – maioritárias ou não, ainda que não haja a veleidade de crer que todos a compreendam. O leitor de poesia procurá-la-á em secção própria. Que por mais pública que seja, está ainda confinada às margens.

Mesmo nesta permissão que nos limita agora
Poema a poema há os que procuram
o poema que não está escrito
nunca e para o qual um parque de ameaçados
caminha.
(Magalhães, 2000:64)

O poeta tem consciência que a inclusão da poesia no jornal é uma “permissão”, e que leitores há a quem o poema não basta, procurarão sempre o que “não está escrito nunca” (Magalhães, 2000:64), mas isso não encontrarão pois o poema só “apanha o real”, porque o é.

mas o poema fala, fala de si
apanha o real porque nele está
quem o escreve, que sou eu
que procuro deixar um sinal
de quanto nos esmagam
a todos os que são nós.
(Magalhães, 2000l:64)

A poesia é um reflexo quase mimético do real, não é um projecto linguístico:

A poesia não é uma obra de si mesma.
Provém de radiações, desse amontoado
Donde retira o glúten, a albumina, a sonda
Transitória e reúne ao sinal mais agredido
A pujança de florações a caminho do enterramento,
Animais arrancados em redor.
(Magalhães, 2000l:64)

A poesia vai além da reflexão/construção em torno do signo linguístico, vai até ao imo do real, não ao real estético, mas ao real onde se sofre, onde se sente a transitoriedade da vida, o sofrimento, onde se sente o apelo trágico.
Ainda que involuntariamente, Joaquim Manuel Magalhães assume-se como educador das massas. A publicação de uma arte sociológica em forma de arte poética é a tradução prática de um desejo latente na obra ensaística, é o desenhar das linhas de força daquilo que deve ser a poesia. A poesia abandona a esfera do privado para fazer parte de um produto de consumo e desgaste rápido: o jornal. Mas mesmo aí não consegue ainda contaminar as outras secções do jornal, é a penas mais uma rubrica com um público bem definido.
Esta poesia, partilha um projecto comum, com todas as outras poéticas posteriores à Poesia 61 e à PoEx: regressar ao real.

“Voltar ao real. Sim. Como o disse
quando outros se refugiavam
na linguagem da linguagem .”
(Magalhães, 2000:56)

Há uma recusa e um repúdio imenso face às poéticas de 60. Genericamente, esta poesia procurava “sentir o «peso das palavras», o qual era sustentado pelo que Carlos de Oliveira há-de designar por «micro-rigor», que seria o suporte da própria construção do poema” (Guimarães, 1999:124). Em Joaquim Manuel Magalhães há um sistemático repúdio por esta forma de entender a res poética. Gastão Cruz, um representante legítimo da Poesia 61, diz que “Há no poema um sentido violento da forma, que é a marca da imaginação” (Cruz: 1999,337). Esta valorização da forma e a “convocação aparentemente arbitrária de signos” (Cruz: 1999,337) é totalmente contrária ao regresso ao real desejado por Joaquim Manuel Magalhães.

Mas nunca, isso não,
O abstracto da referencialidade
Só a si, como retardados teóricos
Ainda hoje manejam.
(Magalhães, 2000x:56)

JMM aproveita o espaço público que é o jornal para expor as suas ideias, para formular juízos de valor, para impor a sua visão do mundo.

Detesto o esteticismo, os que seguem
a literatura, quero um corpo habitual
adormecido na madrugada. Basta-me
a imperceptível felicidade diária
enquanto por dentro me corroem.
(Magalhães, 2000x:57)


Esta a “imperceptível felicidade diária” é tão somente o desejado real.


E quando ouço falar destes da escrita
Na sua desde sempre esquadria de promoções
Olho para o João e rio-me. Assim,
O que indica e ilumina a poesia?
Se desta palavra posso falar. Se
Ela o quer. Não há-de ser
Nada, dizemo-nos. E
Continuamos a conversar.
(Magalhães, 2000x:57)


Essa poesia voltada para as experiências linguísticas é o “Nada” e é conotada com lobbys literários – “esquadria de promoções” -, dos quais nem Joaquim Manuel Magalhães nem João Miguel Fernandes Jorge, fazem parte. A poesia de Joaquim Manuel Magalhães inscreve-se na movimentação pós-modernista. Este “projecto” (se assim podemos dizer), não persegue uma visão do mundo, mas pretende regressar ao real pela atenção que começa a prestar ao quotidiano, ao naturalmente vivido e experimentado, à sua inevitável banalização. Isto ia ao encontro de alguns ensinamentos que T.S. Eliot propusera e que a poesia portuguesa entretanto acolhera”
(Guimarães, 1999:130)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Caderno, de Adília Lopes


“Vivo
dia a dia
sou
uma mulher-a-dias”
(Adília Lopes)


Comecemos pela capa de Caderno (2007), reprodução de um antigo caderno de registos de contabilidade. Um registo do deve e haver de uma mulher-a-dias da poesia que dedica o livro a outra mulher-a-dias. Uma mulher-a-dias que arruma “um palácio confuso /como o fundo do mar” (pg. 26), apesar de o fundo do mar estar arrumado.

A obsessão adiliana pela arrumação vem da tentativa de adiar o caos. Já em A mulher-a-dias (2004), Adília Lopes se apresenta como uma mulher-a-dias que “arruma o poema / como arruma a casa” (Lopes, 2004:13). Uma casa, se não for limpa e arranjada, com uma certa regularidade, rapidamente se deteriorará: lixo amontoado; telhados e paredes em mau estado, janelas com vidros partidos que deixam entrar o vento e a chuva, que por seu turno destroem papéis, livros e outros objectos. Para que este deterioramento natural e espontâneo não aconteça “há que despender, duma forma quase contínua, energia, esforço e …«fazenda». Só assim se impede que aumente a desorganização” (Peixoto, 1994:47). Adília procura, de todas as formas, evitar o colapso e evitar a realização da Segunda Lei Termodinâmica. Se a entropia aumenta no decurso do tempo, Adília Lopes procura a todo o custo desviar-se dela:

É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
(Lopes, 2002: 13)

Sabe-se que a entropia aumenta no decurso do tempo e é irreversível: é a seta do tempo. Adília Lopes procura ser um constrangimento, evitando o seu aumento. Se a entropia constitui uma “medida quantitativa da desordem” (cf. Pinto Peixoto), isto implica que quanto menos provável for a distribuição de moléculas ou de átomos num sistema, menor será a entropia. Ora, Adília recebe a “ a entropia de cada dia” (Lopes, 2002: 13) e ocupa-se depois em desorganizá-la. Os seus textos são disto mesmo reflexo: os caminhos percorridos pelas palavras são os menos óbvios, os menos prováveis: “o poema desentropia” (idem, ibidem).

Adília Lopes, na qualidade de mulher-a-dias, vive a um nível entrópico extremamente baixo, cercada de uma miríade de objectos e situações que “metaboliza”, renovando-os continuamente, numa tentativa de adiar a entropia:

Depois de lamber cuidadosamente
as minhas feridas mudei
o lugar as minhas jóias
estavam num cartucho
de papel pardo dentro de uma gavetinha
(Lopes, 2000:26)

O mudar de lugar é uma forma de travar a seta inexorável do tempo.
No panorama da poética actual, Adília Lopes é, talvez, um dos nomes que mais reflecte sobre a construção do texto poético As definições de poesia e as reflexões sobre temas que gravitam em torno dela abundam: o poema “é mais emblema / que lema” (idem: 309) ou “o poema / sai barato /já não se escreve / com pena de pato. “ (idem:396) ou ainda que “o escritor / é as vezes / um estupor” (idem:420) e “o prémio / nem sempre / é génio” (idem, ibidem). E, ainda, o já clássico. “O poema não deve ser / uma mala / mas um mal / entendido (idem: 408).

Em Caderno (2007), a poesia como um edifício que tem de ser construído “perda / sobre / perda // Pedra / sob / pedra.” (idem:17). Transformar a perda em pedra, o degrau em verso: Degrau a degrau / Verso a verso / O poema/A escada” (idem: 24).

Ao contrário dos últimos livros de Adília , Caderno (2007) apresenta-se despojado de notas, logo mais limpo, a caminhar para um abismo de silêncio. Adília continua a cortar, a livrar-se das flores da retórica e da oratória (inutilia truncat). Se os adjectivos já quase tinham desaparecido, agora são os verbos que são usados com parcimónia. Em Caderno caminhamos para uma poesia de pura nomeação: a rua, as casas, as grades, os portões, as árvores.

Em “A Escada”, crónica de 2002, Adília constata que a escrita e a vida exigem cálculo e premeditação, acrescenta: “a vida, para mim, é contemplação, não é acção, nem quase é gesto. A vida é visão, contemplação do mundo. Estado que não precisa de palavras nem de números. É esse silêncio de quando passa um anjo. O silêncio que é comunhão e presença, o oposto da solidão e do vazio.” Os seus textos caminham para o silêncio: a própria repetição é a destruição da palavra.

Nessa mesma crónica, a propósito de Solidão I, de Irene Lisboa, Adília fala de uma aguarela de Carlos Botelho, que está na capa, e que representa Lisboa, sem pessoas nem, animais: “Lisboa aparece como um jogo de volumes, de paralelepípedos coloridos, um palco abandonado pelos actores mesmo antes de ser atacado por um bando de bailarinos ou por uma praga de andorinhas e de gaivotas”. A rua e a cidade de Caderno são também esvaziadas de gente:

Casa amarela
Casa azul-turquesa
Árvores
Como castiçais
Duas janelas
Como dois barcos.

(Lopes, 2007: 8)


Mesmo as pessoas do metro, são meras cartas de jogar, fora de um qualquer baralho.
O livro abre com dois poemas sobre a sua rua, textos onde se ouvem os portões a abrir, onde se vêem as grades pintadas de verde do quartel, a casa amarela, a casa azul-turquesa, as árvores:

Quando encostam
ou abrem
o portão
do pátio do Duarte
na minha rua sossegada
à tarde
é como se os músicos
afinassem os instrumentos
antes do concerto.
(idem, ibidem)

Elementos que em Le Vitrail, la nuit - A Árvore Cortada (2006) eram vistos, a partir de casa, através dos vidros com defeitos:

Pelas janelas
vejo a luz do Sol
nos choupos
os azulejos azul-turquesa
da casa em frente
e os ferros pintados de verde-escuro
das varandas.

(idem, 2006: 5)

Os vidros e os espelhos que obstaculizavam AL, quase desaparecem neste livro, ou melhor foram quebrados. As barreiras desaparecem e talvez por isso “o céu sobre Lisboa / de tão azul / é branco” (idem, 2007:25) Ficam apenas as portas. As mesmas que em Le Vitrail, la nuit - A Árvore Cortada (2006) se apresentavam como uma dúvida:

Se não fecho
algumas portas
há correntes de ar
a mais

Se fecho
todas as portas
não posso sair mais

Se não abro
algumas portas
não fecho
algumas portas

Se abro
todas as portas
desintegro-me

(Lopes, 2006:54)

Agora, usa a sabedoria proverbial para justificar os limites se impõe. Decide não procurar mais, resigna-se:

Há portas
que é melhor
fechar para sempre.

Há portas
que é melhor
nunca abrir.

(idem, ibidem)

Não conseguimos deixar de ver nestas portas um alçapão para o passado e para as memórias pessoais que povoam de forma dessentimentalizada todos os livros de Adília Lopes, até este. Uma memória de uma família excessivamente protectora, de uma infância abrigada e abafada por agasalhos inúteis que a não defendem da vida: “a vida é luta” (Lopes, 2007:9):

Fui uma menina demasiado protegida
a minha mãe arrancava o cochicho
aos bonecos de chiar
para eu não o engolir
eu apertava os bonecos de chiar
os bonecos de chiar não faziam barulho
deitavam ar e era tudo
aos gatos de peluche arrancava os bigodes
para eu não me picar
as meninas que vinham brincar comigo
cortava as unhas rentes
para não me arranharem
se estava na aldeia
tapava-me os ouvidos com bolas de cera
para eu não poder ouvir os morteiros
da festa de Santa Úrsula
aos livros da Condessa de Segur
arrancou as páginas
em que as crianças são chicoteadas
com vergastas pelas madrastas
e aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
por ela lhe ter feio um arranhão
se me lia contos de fadas
saltava por cima da maçã envenenada da Branca de Neve
e do fuso envenenado da Bela Adormecida
(Lopes, 2000: 113-4)

Adília Lopes é afastada de todas as sensações: não podia ouvir o chiar do peluche, nem os morteiros da festa de Santa Úrsula; não podia sentir os bigodes do gato, nem as unhas das outras meninas; não podia ler as passagens mais violentas e dolorosas dos contos infantis ou das histórias da Condessa de Ségur.

cresci completamente vestida de algodão
porque achava que a lã e as fazendas
me picavam
queria muito ir a praia
mas a minha mãe tinha medo que eu me afogasse
deu-me um búzio
para eu fazer uma ideia
do que era o barulho do mar
e deixou-me chapinhar na banheira
mais tempo do que era costume
também a Veneza não me deixou ir
por dizer que cheirava mal
deu-me uma colecção de estampas
e uma gôndola em miniatura
mas não tão pequena
que se pudesse engolir

(idem, ibidem)

O conhecimento do mundo foi feito de forma indirecta, através de substitutos que miniaturizam a realidade: o búzio substitui a praia, as estampas e a miniatura da gôndola substituem Veneza. A realidade é redimensionada à escala de um bibelô: todo o exterior cabe numa pequena vitrina. Além de se tratar de uma forma oblíqua de aceder ao concreto, é sempre uma forma parcial, amputada (é a parte que não permite conhecer o todo). Agora, é tempo de não abrir essas portas do para o passado, afinal “o passado /´É barro /Como o futuro” (Lopes, 2006:71:).

As criadas, as tias, a mãe, o pai ficam para lá dessas portas. Há uma aprendizagem, uma necessidade de aprender a anestesiar o sofrimento. Só restaram as Botelhos, ou melhor a casa das Botelhos, como uma cicatriz de uma infância distante. As Botelhos, eternas rivais, eram as vizinhas, as colegas que censuram, que desaprovam, que criticam. O olhar das Botelhos sobre Adília Lopes é, ainda, o olhar dos outros sobre ela:

A cerejeira está em flor
À porta das Botelhos
A casa das Botelhos
É amarela.

(idem, 2007: 14)


Agora, das Botelhos, só resta a casa.
Em Le Vitrail, la nuit - A Árvore Cortada, Adília Lopes anuncia que:

Acabou
o tempo
das rupturas


Quero
ser
reparadora
de brechas

(idem, 2006: 24)

Caderno (2007) assinala esse novo momento. O universo feminino, as artes domésticas, o corpo, a sexualidade, a humilhação quase não são convocados. Caderno traz apontamentos, notas, legendas, graffitis. E assim, uma vez mais, Adília torce as expectativas. Ainda assim, quem procura a redenção, o sublime, o apaziguamento, a bela palavra, os bons sentimentos não o procure aqui. Aqui não há remissão: há, apenas, desvios.

Bibliografia:

Lopes, Adília
(2000), Obra, Mariposa Azual, Lisboa.
(2004), A Mulher-a-dias, &etc, Lisboa.
(2006), Le Vitrail le nuit – A árvore cortada, &etc, Lisboa.
(2007), Caderno &etc, Lisboa.


PEIXOTO, José Pinto

(1994) – Entropia e ainda entropia. Col. Textos Escolares Universitários,Universidade do Algarve, Faro.

Caderno, de Adília Lopes”, Das Artes e das Letras, 7 de Abril de 2008.

domingo, 31 de agosto de 2008

O Albatroz, (a propósito de Mágoa das Pedras, de Joaquim Castro Caldas)

Ses ailes de géant l'empêchent de marcher. (Baudelaire)
Eu vi a luz em um país perdido. (Pessanha)


Tendo por fundo um eco baudelairiano, Joaquim Castro Caldas evoca em Mágoa das Pedras (2008) a consciência da indiferença do seu tempo e da sua própria diferença – um albatroz em desasado, um canguru no meio da beleza.

Quando o albatroz, o monarca azul dos ares, é por sádico prazer preso pelos marinheiros, perde a graça e as longas e as suas pesadas asas tornam-se um empecilho. O que antes era belo e admirável é agora risível – “lui naguère si beau, qu'il est comique et laid!” . Assim, também o poeta que enfrenta vendavais e se ri da seta no ar, quando exilado no chão, obrigado a cumprir regras que desconhece e a estar monotonamente no meio de todos, não consegue, sequer, andar. Assim o albatroz de Coleridge e Baudelaire, assim Joaquim Castro Caldas.

Nenhuma imagem é tão perfeita para a poesia e para a figura de JCC como a do albatroz: o poeta incompreendido, o príncipe da altura, o estrangeiro em terra. Façam-lhe ao menos a justiça de o não julgar nem fora , nem antes do tempo (Caldas, 2008:10).

Mágoa das Pedras traz-nos uma memória de um tempo em que se amava “e nunca se pedia / aos corações desamarrados / falava-se de tesouros perdidos / partia-se à procura de um dia” ( p. 35), mas um tempo que não vale já a pena lembrar pois “mordiscar o tempo sabe a esferovite” (p. 28). O poeta continuou a dançar mesmo depois de a música ter parado. Todos os outros, se habituaram a viver sem asas, a andar rente ao chão: ele não, insiste no voo, resiste - “apanho mar e lavo os olhos com luz / deito a cabeça na areia carrego o coração” (p. 13) – e transfigura-se em “anjo mensageiro que por mar, terra e céu” anuncia o apocalipse para os que “informatizam a eternidade” (p. 17) e para os que não perceberam que a grande revolução ainda não está feita.

Mágoa das Pedras é feita de aindas e agoras : “ainda as líricas impressas”, ainda a vida em fundo” (p. 10), o lume ainda aceso (p. 20), um grande amor ainda espera pelo amor ” (p.59) e por agoras, certezas de que acções incompreendidas no passado, agora fariam ainda mais sentido: “agora é que tinha graça” e “há lixo da época ouro hoje […] que agora nos deixam a pele em arrepio” (p.55). Os “aindas” e os “agoras” do texto são pequenos freios impostos ao tempo: tentativas fugazes de, com o capital de vida acumulado, viver de uma forma mais distendida, mas a velocidade impressa no passado, não perdoa e já não há travões possíveis (note-se que quase não há pontos finais, não se pode mesmo parar).

A imagem que o título cataforicamente projecta na obra é a do relógio de água: a clepsidra - água, mágoa, pedra. A água que mede o inexorável passar do tempo e nada fixa. A palavra escrita é a resistência num tempo esquivo: “escrevo à mão a quem se debruça ainda nas líricas impressas” (p. 10), num tempo de sms – “hoje para chegar a tempo manda-se um silêncio a dizer morri, vivalma, nada”(p. 31) - e outras redes.

Numa óptica palimpséstica, Mágoa das Pedras traz-nos o desejo presente em Pessanha de “deslizar sem ruído” (Pessanha, 1987: 33): de passar, de ir. Sem nascimento e sem morte: apenas uma mudança de energia - on/ off :

“tudo passa e desaparece, recomeça, a cada vez diferente, a voz sugere, o que está em movimento recupera a fonte, a voz foge, aqui não há morte, a vida recomeça, há só uma energia que muda de forma e mergulha” (p. 9).

Em Castro Caldas, há um paradoxal estar dentro das coisas, estando ao mesmo tempo distante. Há uma incapacidade de parar, de fixar, por pouco tempo que seja, o próprio tempo. Uma fina película - “película de água” (p.9), película de geada” (p.39) - aproxima-o e afasta-o do concreto, como se esvoaçasse, sem nunca verdadeiramente voar, mas também, sem nunca verdadeiramente poisar. É um estar por dentro, vendo tudo a uma certa distância, ou melhor num outro tempo. A película, o biombo, a neblina devolvem-nos um intervalo e, ainda assim, “tudo se passa por dentro” (p.33).

Os amigos são as estratégias de continuar inscrito, amarrado ao tempo e ao real: são os violinos e são as cartas. O amigo é o príncipe e o livro que depois relido continua novo e puro. O amigo é a faca que rasga caminhos, é aquele que chega sempre a tempo ao mesmo destino.

Em Mágoa das Pedras sente-se a correria desatinada para o abismo, através de um trajecto de acumulação de ideias e de uma de construção sintáctica desajectivada. A febre que empurra para o abismo é a mesma que faz com que se entrecruzem planos e sensações na água, na mágoa que tudo arrasta.

As palavras que tomou de empréstimo – as que disse, as que usou - são agora despidas e despedidas, como que se tivessem atingido uma maioridade que o dispensa, a ele enquanto voz:

Vão-se embora palavras
Deixem-me ali à esquina
Amem e façam-se à vida
Não temam a morte voem
Sabem que são minhas
Para lá dessas fronteiras
Que desapertam as rimas
Com poemas ou bombas
Fucem apanhem boleias
Só vos deixei preparadas
Para os cornos dos poetas (p. 46)

Num poeta “diseur” é curioso este mandar ir as palavras, sem si, este “ir indo”: as palavras ficam desatadas como puro espírito à procura de uma voz, talvez porque acredite existir só “uma oportunidade” (p.52):

Tinha uma luz para voar
Tinha o dom e a dedicação
Para ir mais longe do que tudo
Mas esqueceu-se de que além do brilho
Só há uma oportunidade (p.52)

Depois do sopro no pavio, são as palavras desfraldadas, as palavras ditas e escritas que ficam e sobrevêm ao tempo: são a inscrição possível nas pedras. Não há espaço para corrigir erros, repetindo, qual jockey, a corrida à procura de um outro resultado. O destino é o do albatroz prisioneiro, o do cavalo caído. Resta-lhe apenas ajudar o próximo cavalo a ter melhor sorte “e não culpar ninguém ” (p. 53).

Do poeta habituado a “dizer”, sobra para a poética, a música verlainiana: “vagas breves”(p. 13); Suor / do trigo/ a sangrar / no dorso” (p. 23); “Moinho / do vento / violento/ a dobrá-lo” (p. 23); o amigo é um violino / estimado, obstinado” (p. 24); “de alfinete paciente e carinho antigo / o virtuoso ausente/ omnipresente “ (p. ), “Sotaque e o cognac “ (p 27 ), Mesmo triste a sorrir sempre” (p. 27), “as papoilas as palmas “ (p. 28); “não há orgãos, mãos e olhos, esporas e poros” (p.31); “bebemos buio / fumamos breu” (p. 33); “passa a mão ao de leve pela sede e na seda” (p. 44); “ vão as botas mágoa erecta de ervas” (p. 48). A música que emana dos versos, a música do violino é omnipresente – como se todos os silêncios, todas as solidões tivessem de ser preenchidas agora, pois não se sabe se há música depois, espera-se apenas que ela exista: “espero que haja música / no espaço mítico da morte” (p. 51).

Joaquim Castro Caldas junta, neste livro, os quatro elementos: esconde no título a água e a terra, deixa fugir para a capa o fogo e deixa os versos futuar. Ar, Fogo, Água e Terra, assim o albatroz faz o poema.

Concluímos com Sena e com o seu albatroz:

"Os marinheiros tinham apanhado o albatroz, e a ave, coitada, habituada a sobrevoar livremente as ondas, não sabia andar no convés do navio, tropeçava nas asas. É o que acontece com todos nós, os que voámos alguma vez. Fica-se a vida inteira a tropeçar nas asas, e a dar com a cabeça na gaiola." (Jorge Sena)

Mágoa das Pedras guarda as mágoas do albatroz que tenta voar, mas inevitavelmente inscreve o seu sangue nas pedras.

Bibliografia:

Caldas, Joaquim Castro, Mágoa das Pedras, Deriva, 2008.
Baudelaire, Charles, As Flores do Mal, Relógio d’Água, 1998.

Pessanha, Camilo Clepsidra, Ulisseia, 1987.
Sena, Jorge de Sinais de fogo
, Asa, 9ª ed. 2001.

O Albatroz (a propósito de Mágoa das Pedras, de Joaquim Castro Caldas)”, Das Artes e das Letras, 11 de Fevereiro de 2008.

O desalinho na poesia que se dá a ler : o lugar dos poetas do séc. XX na Escola

« o que eu escrevo não se diz»

Adília Lopes

O entendimento do que é literatura está associado a textos que oferecem resistências ao nível da língua. No caso da poesia, a linguagem que coloca entraves, que afasta, que distancia é entendida, recorrentemente, como forma de tornar os textos mais “poéticos”. A ideia de poesia ainda está associada a um imaginário de distância, de dificuldade, de elevação. O facto de em alguma da mais recente poesia, a nível linguístico, não existirem quaisquer entraves torna-se, portanto, um obstáculo intransponível para que alguns entendam esses textos como res poética. O poema que abre o novo livro de Inês Lourenço, Disfunção Lírica (2007), é revelador:

Nenhum destes poemas
Fará parte de um livro
Adoptado nas escolas. Há
muito tempo que não escrevo
azul mar e barcos ou outras
palavras para alívio de almas
homéricas.


Prefiro – ou preferem-me
Aquelas como: desalinho
Alinhavo ou logro ou outra
Qualquer. Nunca o arremedo
De uma palavra única esgota
O muito ou nenhum sentido
de um verso.

(Lourenço, 2007)

Uma certa ideia do que é (ou deve ser) a poesia faz com que se silenciem algumas vozes, com que se obscureçam alguns nomes, com que se legitimem uns em vez de outros, não apenas nas estantes, mas também nos curricula escolares. O ideal seria aceder aos textos sem necessidade de grandes espaços mediadores ou de contextualizações excessivas. O ideal, ou melhor, o meu ideal, é descobrir o texto na sua singularidade: com emoção, sem autor, sem época, sem tempo e só depois, vê-lo pelos óculos da poietica de forma a cruzar e a contaminar esse mesmo texto com outros que já façam parte da constelação individual de leituras.

Quer se queira, quer não os manuais (muito mais do que os programas curriculares) são os instrumentos que certificam, regulam, condicionam e ensinam a “ler”. Talvez seja por isso que há formas de dizer que (ainda) não conquistaram um espaço certificado:

A escola ocupa um lugar homólogo ao da Igreja que, segundo Max Weber, deve «fundamentar e delimitar sistematicamente a nova doutrina vitoriosa e defender a antiga contra os ataques proféticos, estabelecer o que tem e o que não tem valor sagrado, fazendo-o penetrar na fé dos laicos»: através da delimitação entre o que merece ser transmitido e adquirido e o que não merece, reproduz continuamente a distinção entre obras consagradas e as obras ilegítimas e, no mesmo acto, entre a maneira legítima e a maneira ilegítima de abordar as obras ilegítimas. (Bourdieu, 1996: 175)

Os manuais são dispositivos pedagógicos que estruturam não só os percursos de leitura, como também restringem os conhecimentos de âmbito literário e metaliterário, muitas vezes com décadas de atraso em relação aos estudos académicos[i].

Uma das sequências de aprendizagem do 10º ano de Português prevê que seja dedicado um espaço (breve) à poesia do século XX[ii]. Aliás, o programa não é, neste aspecto, directivo ou restritivo, prevendo uma breve antologia de poetas do séc. XX. É óbvio que essa antologia deve ser preparada pelo professor, contudo, a prática e os estudos mostram-nos que o manual condiciona mais a actividade do professor que o próprio programa (cf. Castro).

Assim, a partir de uma amostra assumidamente limitada (apenas quatro manuais ): A Arte das Palavras, de Hilário Pimenta e Vasco Moreira, da Santillana; Entre Margens, de Olga Magalhães e Fernanda Costa, da Porto Editora, Português Activo, de João Alves e Maria João Conde, da Plátano editora e Página Seguinte, de Filomena Martins Alves e Graça Bernardino Moura, da Texto Editora, constata-se que, além de escassa, a poesia do século XX não está representada em todo o seu vigor, tendo em conta que o século XX foi um século de oiro para a lírica portuguesa. Em nenhum dos manuais enunciados surge, na sequência dedicada à poesia do século XX, o nome de Herberto Helder ou de Joaquim Manuel Magalhães ou Vasco Graça Moura ou de João Miguel Fernandes Jorge ou de António Franco Alexandre ou Luís Miguel Nava, para falar em nomes que além de representativos, são incontornáveis.

Os textos apresentados são escassos (dois ou três poemas por autor) e sempre acompanhados por linhas de leitura ou de análise textual que condicionam o horizonte de expectativas do leitor, prendendo o poema aos textos metaliterários que o contextualizam. Assim, o poema em vez de ser a alavanca desencadeadora da reflexão e da intervenção, apresenta-se uma mera demonstração do já previamente anunciado. Não se espera que o aluno pense: espera-se que constate. Acresce referir que na selecção feita pelos referidos manuais se introduzem poucos nomes novos, pois repetem-se muitos poetas e poemas propostos no programa de Língua Portuguesa para o 3º ciclo[iii]. Nos manuais, o texto lírico serve, frequentemente, de pretexto para a abordagem de conteúdos de funcionamento da língua ou para o descortínio das intenções autorais: «a tendência para fazer da leitura um processo de intenções ou uma adivinhação do estado (de alma) em que estaria o poeta para falar de tal maneira» (Rubim,2000: 45).

A par do constrangimento provocado pela parca escolha, o tratamento do texto poético em contexto pedagógico é, normalmente, feito através de uma leitura colectiva, regulada e normalizada (cf. Vieira), fazendo com que todos retirem os mesmos sentidos, quase sempre a partir das linhas de leitura propostas (impostas?) pelo manual.

A escola continua «a ser a maior autoridade especulativa e a maior responsável pela organização do capital cultural amealhado por uma sociedade» (Teixeira, 2005: 14) e o espaço onde se regulam as leituras e os modos de ler e, sem qualquer desprimor para os autores eleitos, continua a favorecer os que escrevem «azul mar e barcos ou outras / palavras para alívio de almas / homérica.» (Lourenço, 2007). Não que estes volumes gnómicos sejam, ou devam ser afastados, mas já é tempo de abrir as páginas dos manuais a textos que tragam para o campo poético outras formas de ser e de estar na poesia. A poesia é mais do que «azul mar e barcos», é mais do que trabalho de linguagem: é também a linguagem do quotidiano. O sublime às vezes é o sujo, o lixo, a putrefacção. Criar leitores apenas para trilharem os caminhos habituais e previsíveis do texto é reduzir as potencialidades da poesia.

Na actualidade, Adília Lopes representa a ausência de preocupação com o belo, com o sublime, com o despertar de “bons sentimentos”. O seu dizer chão lança mão de um dos artifícios que usualmente distinguem o “dizer” poético: não se recorre a um vocabulário rico, a figuras de estilo distantes do dizer quotidiano, nem da sua poesia se retira uma moral que possa ser transportada para outros contextos. Ali não há espaço para uma oposição à cultura de massas, nem ao gosto comum: não há uma demanda do inefável, nem tão pouco uma tentativa de distanciamento em relação à massificação da cultura e da sociedade de massas. É importante que os manuais escolares – que são muitas vezes os únicos livros que existem em algumas casas – comecem a constar outras poéticas do séc. XX. Textos contaminados pelo quotidiano, pela poesia do quotidiano. A importância do manual não pode ser diminuída, uma vez que este dispositivo pedagógico é uma forma de nivelar as desigualdades sociais e promover o acesso a determinadas tipologias textuais que, de outra forma, seriam bastante difíceis.

Nos manuais, ainda se conserva a ideia de poesia, enquanto arte aristocrática, uma forma de arte que ajuda a discernir entre uma cultura superior, bem formada, culta, uma sensibilidade maior e uma cultura inferior, vítima da massificação do gosto. É óbvio que este entendimento impede que nomes como o de Adília, Jorge Sousa Braga, Manuel António Pina, Ana Luísa Amaral, Pires Cabral, entre outros, surjam nos manuais. Apetece copiar as propostas de Armando Silva Carvalho :

«Não falar da poesia das flores, dos cogumelos, dos montes, dos vales e da pomada lírica com que se protege o rosto da natureza. Não falar da poesia das palavras naturalmente poéticas, da mensurável construção do poema, dos rigores ascetas que obrigam a sintaxe às mais violentas provas de combate contra a matéria flácida que se esvai dos sentidos e não possui a calibragem do signo ensimesmado» (17)

Recuperando o “Desalinhavo” de Inês Lourenço, importa levar para a Escola uma lírica não operativa, que não corresponda ao que se espera: ao que os curricula desejam. A receita poética do manual exige textos que promovam o sublime e a elevação. A estética da decepção, muito mais de acordo com a actualidade ainda não garantiu o seu lugar.

Magalhães, no seu estilo acutilante, escrevia em 1989:

“O espírito dos livros, esse éter viciador, desapareceu entre revoadas de detritos vocabulares, de alarvices administrativas, de foleirice educacional. Ouvir hoje falar os acossados e infelizes professores de todos os níveis de ensino (que dantes incutiam a droga fulgurante da leitura), é assistir a um desfile de inépcias, a um esquematismo de fotocópias, à sufocação entorpecida por ordenados que mal dão para sobreviver quanto mais se descobrir em hábitos de conhecimento, à amargura se seres a si mesmo despromovidos, incapazes do gosto porque amordaçados por tempos infames e destruidores em tarefas imbecis, entre gente submetida à maldição de um Ministério medíocre, de boçais burocratas de Ministério, fugidos ao que é ser professor, sindicatos meramente auto-promocionantes: assim sucumbem os mecanismos de sedução num inescapável desalento (…) alguns [professores] até gostam de ler. Mas os quase nenhuns a quem foi concedido ser o corpo que se transfigura no espírito dos livros sabem que também aqui, como em tudo o mais, são uma inútil desrazão” (Magalhães, 1989 :294)

O negrume de Magalhães não será exacto hoje, contudo se o professor não for além do livro, se não se deixar inebriar por outras vozes, se não questionar o manual, se não ousar, não vai fazer a poesia acontecer. É necessário que também ele - ou sobretudo ele - tenha o gosto da poesia, que aprecie o ritmo, o rigor, a crueza, a limpidez de cada palavra. Esperemos que o professor faça do manual apenas mais um recurso e que não o transforme numa bíblia sagrada, conseguindo desta forma que o aluno se torne um construtor de sentidos.
Aprenda-se a lição de Eugénio: «Falar a quem quer que seja de aliterações, hipálages, oximoros, ou de singularidades biográficas, ou de movimentos literários não leva longe. O que importa fazer é pôr a poesia a falar. Mas para isso é necessário a quem ensina, antes de mais, ter o gosto da poesia e, em segundo lugar, saber lê-la» e adiante continua:

“Se eu fosse professor, levaria para a ula um poema contemporâneo, com mais possibilidade de ser entendido naquelas idades, por exemplo, José Tolentino Mendonça. Lê-lo-ia devagar, permitindo assim não só a respiração de cada verso como também que as palavras deixassem rasto, lá onde elas se demoram e penetram no sangue, seguindo o ritmo da própria fala:

Ouve o que diz a mulher vestida de sol
Quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste

O coração?»”

(Andrade: 2000, 28)


BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Eugénio (2000). “Como falar de poesia?”. In Relâmpago – Como falar de poesia?, nº6, 4/2000. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, pp. 27-28.

CASTRO, Rui Vieira de (1995). Para a Análise do Discurso Pedagógico. Constituição e Transmissão da Gramática Escolar. Braga: Instituto de Educação e Psicologia – Universidade do Minho.
CASTRO, Rui Vieira de (2002). In Relâmpago – A Poesia no Ensino, nº 10, 4/2002. Lisboa:Fundação Luís Miguel Nava, pp. 87-90.
BOURDIEU, Pierre, (1996), Regras da Arte (trad. Miguel Serras Pereira), Editorial Presença, Lisboa.
LOURENÇO, Inês (2007), A Disfunção Lírica, & etc, Lisboa
MAGALHÃES, Joaquim Manuel ( 1989) Um Pouco da Morte, Editorial Presença, Lisboa.
TEIXEIRA, Rui Azevedo (2005) Uma proposta de Cânone, Ed. Cosmo, Chamusca.

RUBIM, Gustavo (2000). “Como falar de poesia?”. In Relâmpago – Como falar de poesia?, nº6, 4/2000. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, pp. 45-48.


Os poetas na Escola ou a Estética da Decepção”, Das Artes e Das Letras, Janeiro de 2007.



[i] Em nenhum manual consultado (novamente assumo a diminuta amostra), encontrei referência a Camões enquanto poeta maneirista, este é sempre apresentado como exemplo da poesia clássica. Ora, Jorge de Sena e, de uma forma sistemática, Aguiar e Silva reposicionaram já o maneirismo na literatura portuguesa, contudo os manuais escolares não fazem eco disto mesmo. Um sonetos como Amor é fogo que arde sem se ver ilustra bem a estética maneirista, marcada pelos desgostos de amor, pela desilusão da vida, pelos infortúnios pessoais e por constantes sofrimentos íntimos.


[ii]Fe
rnando Pessoa tem um estatuto a parte, sendo abordado no 12º ano de escolaridade.


[iii] De acordo com o Programa de língua Portuguesa em vigor, estão propostas leituras de poemas dos seguintes poetas do séc. XX: 7º ano de escolaridade, Saul Dias, Sebastião da Gama e António Gedeão; o 8º ano de Fernando Pessoa, Sophia M, Breyner Andresen, Miguel Torga, Eugénio de Andrade e Alexandre O’Neill; 9º ano, Almada Negreiros, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira, Ruy Belo e David Mourão- Ferreira.

domingo, 15 de junho de 2008

"Os portugueses nunca se querem ver"


"Os portugueses nunca se querem ver"


Aos 33 anos, Joana Vasconcelos faz em França aquela que é, até agora, a sua maior exposição - 13 peças na Passage du Désir, mais três no Instituto Camões. Qual é a importância desta exposição neste momento?É entrar num mercado que me desconhece completamente com uma muito boa fatia do meu trabalho. São 16 peças que, juntas, dão uma boa ideia do que eu sou como artista. Depois, houve um lado de construir uma exposição de forma realmente profissional, com uma arquitectura de montagem, desenho de luz... O que aqui se vê é uma perspectiva sobre o meu trabalho. Isto é uma agência de publicidade muito relacionada com o "design", a moda - o comissariado foi também feito a partir desses interesses. Será uma perspectiva mais ligada ao "design" e à moda. Não é como a exposição que fiz no Mosteiro da Cartuja, de Sevilha, que tinha um carácter muito feminista. À parte disso, o que lhe interessou mostrar neste contexto?Por ser França e haver uma grande comunidade portuguesa, fiz uma exposição que mostra que Portugal também é contemporâneo. Uma das peças que eu trouxe é a mesa com os "tupperware" ["Plastic Party", 1997] e exigi que o "catering" fosse feito com produtos portugueses. Em Espanha nunca exigi isso, nem em Portugal. No fundo, isso é a contemporaneidade: é ser capaz de pegar no passado e torná-lo futuro. E as pessoas que vêm aqui, percebem que estou a dar a volta a qualquer coisa. O constante pegar em objectos do quotidiano ou numa artesania ligada às tradições portuguesas é também uma forma de exponenciar relações entre um tempo passado e um tempo futuro?É estar a expor uma realidade escondida, uma realidade que toda a gente partilha mas de que ninguém fala. Nós os portugueses somos muito assim: partilhamos imensas coisas das quais não falamos. A sexualidade é uma delas. A libertação da mulher é outra. A guarita cheia de espelhos ["Spot Me", 1999] tem a ver com isso. Aquelas guaritas serviam, entre outras coisas, para vigiar comícios, portanto, eram objectos da ditadura. Foram todas queimadas, eu salvei uma e enchi-a de espelhos, mas quando entramos lá dentro [por um efeito de reflexos] não nos vemos. É como a ditadura, e como os portugueses: nunca se querem ver a si mesmos. Como não olhamos para nós próprios, criamos uma impossibilidade de beleza. Vanessa Rato , Público, 18.01.2005

JOANA VASCONCELOS A ARTISTA PRAGMÁTICA

Na Fundição de Oeiras, Joana Vasconcelos tem um grande atelier com áreas de trabalho diferentes, onde há muito espaço para as peças que ainda não vendeu e que vai levando a algumas das exposições no estrangeiro. Na agenda de 2007 já marcou a passagem por cidades como Istambul, São Francisco ou Miami. "As peças vêm quase todas para aqui para serem montadas", explica a escultora de 34 anos, uma das artistas mais internacionais da sua geração e a autora de A Noiva, o grande lustre feito com 20 mil tampões e aço inox que no ano passado abria a exposição principal da Bienal de Veneza.No atelier, que lhe foi cedido há três anos pela Câmara Municipal de Oeiras, depois de ter ganho o Prémio Marquês de Pombal para jovens artistas, Joana Vasconcelos tem madeiras empilhadas junto a uma parede, prateleiras e prateleiras de caixotes, obras espalhadas por toda a parte. "Este é um dos lugares fundamentais do meu dia", diz, falando de uma rotina marcada por reuniões com colaboradores permanentes (tem três) ou pontuais, idas ao atelier do Bairro da Boavista, o primeiro que teve, ou à Metalúrgica de Algés, onde parte das suas peças que envolvem metais são feitas pelas "mãos valiosas do sr. Manuel e do sr. Vítor", que a acompanham desde o início."É muito importante para mim saber que hoje posso trabalhar com várias pessoas, mas é também uma grande responsabilidade", reconhece, olhando para as duas colaboradoras que cuidadosamente vão colando talheres de plástico num grande coração preto inspirado na arte da filigrana. "Há muitas coisas que dependem de mim e isto de ser escultor não é uma profissão que se procure nos classificados dos jornais. É um processo. Hoje sou artista, mas amanhã posso não ser."A artista tem uma visão pragmática da sua actividade e analisa com frieza o comportamento do mercado no que diz respeito à circulação de obras de arte contemporâneas. "Tenho uma relação complicada com o mercado português, não é graças a ele que sobrevivo. Portugal gosta pouco de comprar Joana Vasconcelos." É no esforço de internacionalização que a artista tem apostado: exposições individuais em Madrid, S. Paulo ou Paris; colectivas em Nova Iorque, Tokamachi (Japão) ou Oslo. Sem esquecer Portugal, onde inaugurou há pouco tempo uma instalação em que subverte a cultura clássica e junta as ninfas de A Ilha dos Amores, de Camões, ao deus Baco, cobrindo de croché (técnica que usa habitualmente) uma série de esculturas kitsch de jardim (Museu da Electricidade, até 1 de Outubro). Joana Vasconcelos terminou o curso de artes plásticas do Ar.Co em 1996 e desde então não tem parado de organizar exposições. No início fazia quatro ou seis por ano, hoje chega às 12 e tem de recusar alguns convites. Apesar da presença em museus estrangeiros - está agora a preparar a sua participação numa colectiva que vai passar por três cidades mexicanas em 2007 -, lamenta não estar mais representada nas colecções portuguesas (a Gulbenkian não tem peças suas e a Fundação de Serralves tem apenas uma, "pequena"). "Tenho mais obras nas privadas do que nas públicas", diz, dando como exemplo a Colecção António Cachola, a do futuro Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Porquê? "O mercado está habituado a que os artistas ofereçam sempre o mesmo produto e chega a reagir mal quando isso não acontece", comenta, acrescentando trabalhar materiais diferentes é absolutamente fundamental. "Talvez a versatilidade seja um dos dados mais importantes nas minhas peças. Estou sempre à procura porque tenho medo de cair na tentação de repetir a fórmula. Seria fácil passar do lustre de tampões à sanita-pensos-rápidos, mas isso não me deixaria satisfeita. Na pintura é mais difícil variar do que na escultura, onde as possibilidades são hoje quase infinitas."Aos que a acusam de criar peças imediatistas, responde: "Acho que elas comunicam de forma directa com as pessoas, mas isso não quer dizer que sejam simples ou imediatistas. Se ficam na memória e se complicam o sistema de quem as vê, não podem sê-lo."Gostando de perceber o que fica na cabeça dos espectadores, diz com frequência que hoje trabalha mais as ideias do que os materiais e que as suas obras nascem no caderno que traz consigo. É provável que a que está a preparar para a cafeteria da Casa da Música, e da qual não quer adiantar pormenores, tenha já um esboço nas suas páginas. Os ingredientes deverão ser os de sempre: materiais do quotidiano que, através de um imaginário marcado por temas das cultura portuguesa ou pela arquitectura, ganham outra dimensão nas mãos da artista. Flores do Meu Desejo (1996), Ponto de Encontro (2000), A Noiva (2001), Burka (2002), Coração Independente (2004) e A Ilha dos Amores (2006) são disso exemplo. "Sou muito observadora. Estou sempre atenta aos pormenores, aos desvios no detalhe, às coisas que não batem certo ou estão simplesmente fora do lugar", resume, dizendo ser influenciada por tudo o que a rodeia. "No Coração Independente fui buscar a filigrana dos corações de Viana porque queria um "ícone" do luxo português, queria pegar numa peça de prestígio ligada ao universo popular e trazê-la para a contemporaneidade."Joana Vasconcelos tem já preparado um calendário de exposições até 2008, onde Portugal não está ainda inscrito. A artista plástica vai mostrar o seu trabalho nos Estados Unidos, Turquia, Brasil, Áustria e Reino Unido. "Sou responsável por outras pessoas e tenho vários projectos em simultâneo. Preciso de ser organizada, pragmática." Lucinda Canelas, Público, 13.08.2006

Todos os meus poemas são poemas eróticos



O título: o livro deveria antes chamar-se "Rés-do-Chão", e isso só não aconteceu por razões que a autora desfia numa nota (outro aspecto original num livro de poesia: este tem notas, longas e altamente esclarecedoras), que nos leva até aos Evangelhos, à "Branca de Neve" de João César Monteiro, a Marguerite Yourcenar e aos poetas João Luís Barreto Guimarães e Eugénio de Andrade. A história deste título é parte da vida de Adília Lopes, do mesmo modo que cada palavra do livro o é, numa poesia que, falando das coisas mais íntimas dessa vida, não é autobiográfica (já pela simples razão de a autora Adília Lopes não ser a Maria José Fidalgo dessa vida). O jogo é simples: neste, como em tantos outros livros de Adília, o poeta fala da vida de certas palavras na sua vida, ou da sua vida com certas palavras - muito frequentemente as dos outros, de muitos que escreveram (e falaram) antes. É tudo uma questão de palavras. Mas agora algumas dessas palavras têm um peso especial, quando postas na boca - nas páginas e nas notas - de um poeta. O título, por exemplo, não só tem uma história, como também dá azo, em mais uma nota, a uma clara declaração de princípios políticos por Adília Lopes (contra o amor do poder, pelo poder do amor). Os poetas não costumam fazer isto. Adília faz isto - isto e, como sabemos, muitas outras coisas "poeticamente incorrectas". O poeta, diz, precisa de correr riscos.
Um dos riscos da Adília é o das notas. Por exemplo o risco de a nota c) deste livro ser confundida com uma confissão lamechas, "ridícula e impudica", como ela própria reconhece. Mas não é nada disso. Para mim, esta nota (sobre a morte da gata Ofélia) é qualquer coisa de clássico, a que os gregos chamavam "trenos", um canto de lamentação pela morte de alguém - homem ou gato.Mas volto ainda ao título, que já me fugia: o deste livro quer dizer exactamente o quê? Quer dizer: à poesia o que é da poesia. Mas que coisa é, afinal, da poesia? Tudo!
A divisa da poesia de Adília Lopes é a de uma tradição que já não é o que foi, mas continua a ser a de Adília, a tradição dos humanistas que diz: "Nada do que é humano me é estranho." A começar pela poesia que outros escreveram antes de mim, ou aqui ao lado. Adília saqueia sem pudor (e não há que tê-lo) a sua experiência e a dos outros. Neste livro, isso torna-se de novo mais que evidente: da poesia popular a muitos poetas ditos cultos, das adivinhas e anedotas dos amigos a pintores e autores estrangeiros, franceses e ingleses, e na própria língua deles.Mas não larguei ainda o título: o título está numa capa, naturalmente, e está aí para ser lido, naturalmente. Ora, este título quase não se lê. E este é outro dos lados mais interessantes do novo livro de Adília. A capa é um teste. À primeira impressão, diríamos: não se vê, não vai vender. Mas não terá de ser necessariamente assim. Na livraria, hoje, o livro é uma de duas coisas: ou um "objecto" (versão nobre, e por isso vendável em tempos de novo-riquismo bacoco), ou "mercadoria consumível", para usar e deitar fora (versão pobre, mas rentável para alguns editores e autores). O miolo, a substância, literária ou outra, pouco contam. Ora, esta capa do livro da Adília é um teste e um achado: um céu constelado, mas com cores de terra, o "trompe-l'oeil" de uma impressão imperfeita (mas que é mesmo para ser assim, não é por a & Etc. querer poupar na tinta), uma mandala, ou a vista de qualquer célula ao microscópio, ou a representação de um universo com letras evanescentes, que - e aqui vem o truque comercialmente infalível - nos obrigam a aproximar muito o livro, quase a cheirá-lo, para as ler. E quem o chega assim ao nariz, acaba por abri-lo e, quem sabe, lê-lo.Não se pode falar "da" poesia deste livro. Eu só poderia falar "dos" poemas deste livro, de cada um deles. Mas isso levaria tempo de mais.
Para abreviar, direi que os poemas deste livro falam do que podem e têm à mão, e que o seu procedimento básico é terrorista e anatómico (já era tempo de se reabilitarem estes dois termos, completamente degradados por terem caído nas mãos e nas bocas erradas: o terrorismo, nas de George W. Bush e a anatomia da poesia, há bastante mais tempo, nas da crítica estruturalista). E como funciona então a mão de Adília Lopes? A terrorista saqueia alegremente a tradição e os amigos (a diferença em relação aos outros - poetas, entende-se - é que o faz às claras e sem complexos, que é coisa que um artista não pode ter); e a anatomista transplanta, amputa, decepa, decapita - palavras, versos, letras, imagens. Não por crueldade, não por sede de sangue ou de vingança, mas por... método filosófico (há quem diga que é por ser uma poeta pós-moderna, ou "pop", mas isso não adianta, porque não diz nada). E Adília pratica este método em várias línguas, português, francês, inglês, com o mesmo à-vontade. Mas, no meio de tudo isto, de terrorismos e anatomias, a norma também lá está, aquela que conhecíamos melhor e nos reconforta e confirma ("nihil humanum..."). A poesia é também, sempre foi - e Adília Lopes sabe muito bem praticar essa arte - a arte de criar envolvimentos (Osvaldo Silvestre já escreveu espraiadamente sobre "As Lenga-Lengas da Menina Adília"), sensíveis (dos sentidos), afectivos (da alma) e mentais (das ideias), pondo as palavras a conviver, em encontros harmoniosos ou aos encontrões paródicos e paradoxais, a responder umas às outras, dando música ao ouvido ou abrindo clareiras no espírito de quem lê. O próprio saque da tradição, levado às últimas consequências neste livro, é praticado por Adília de forma que eu diria por vezes genial. Casos há nos quais, em duas palavras, se capta a verdadeira quintessência de um poeta. A anatomia e o saque tornam-se então destilação. Como naquela "leitura" invulgarmente certeira de Ruy Belo e Herberto Helder, na página 26. Quando aí se escreve "Eu jogo / eu juro", diz-se que em Herberto a poesia é um lance de dados feroz e um exorcismo, e quando se conclui o poema com "Eu rezo / eu rio", isso significa que se leu bem a poesia de Ruy Belo como uma religião e uma fonte (um rio) de alegria.Seja qual for o procedimento (a poesia de Adília Lopes é muito uma poesia de procedimentos intencionais, que resultam numa espécie de jogo, consigo própria, com a tradição, com o mundo e com o leitor, e é por isso que facilmente se lhe apõe a etiqueta de "pós-moderna": veja-se o que sobre ela escreveu Lindeza Diogo), esta poesia, aparentemente ingénua, nunca pode ser lida ingenuamente. Tem de ser sempre sobre-lida (com o risco de ser treslida), lida com, à contraluz de..., para, numa conclusão que vem sempre, nos deixar perceber que "isto" é um jogo (por ex. o poema "Melancolia", p. 29; ou o poema proustiano "Não busco/o tempo/perdido", p. 30). O que nos faz perceber esse jogo é o "regresso a casa" do poema, depois dessas deambulações "eruditas" (que o são).
Regresso a casa no verdadeiro sentido do termo: à experiência de um eu que se expõe como autobiográfico e desestabiliza o leitor (o que é a melhor coisa que pode acontecer com a leitura de um poema). É uma poesia inteligente, com alguma astúcia e, neste livro mais do que em anteriores, alguma melancolia (vd. "Coisas de cerâmica", lido no palácio Fronteira em Fevereiro, contra a guerra do Iraque). De facto, este livro soa, em muitas páginas, a canto do cisne. Poesia inteligente - não a daquela inteligência que, diz Adília em mais uma nota, muitas vezes está hoje ao serviço da estupidez -, quer no seu "experimentalismo" (aqui muito politizado: "Continuamos / amos // Continuo / nua", p. 35), quer na sua generosa e sensível manipulação da tradição, como num belo poema a partir do pintor americano Edward Hopper (pp. 46-47).E há ainda a "metapoesia" de Adília Lopes neste livro. O que é isto? São aqueles poemas a que os críticos se agarram quando não sabem o que dizer da poesia de um livro. Porque julgam - mas as mais das vezes enganam-se redondamente - que eles são um guia infalível, e tomam-nos por uma espécie de "reader's digest" ou de "vademecum" para a poesia do autor. É muitas vezes fatal, pelo menos hoje, e já nos modernistas assim era. Os poetas querem-nos levar à certa com essa poesia sobre (a sua) poesia. Adília Lopes também faz isso, em dois ou três poemas deste livro. Recomendo ao leitor que queira entrar no jogo da autora o da página 76, "Todos os meus/poemas/são eróticos..." Mas depois terá de reler todo o livro para confirmar a asserção. Público, 22.11.2003, Raquel Ribeiro

Adília Lopes habita uma casa de bonecas, Bárbara Wong

Por entre objectos antigos e antiguidades, espreitam os brinquedos. O cãozinho de peluche revê-se no espelho emoldurado com rosas de prata. O pequeno porquinho de barro toca um tambor colorido, lado a lado com um severo Cristo, de olhos postos no céu, pendurado numa cruz de madeira com mais de meio metro de altura. Em cima de um velho baú estão outras figuras religiosas, anjos, Nossas Senhoras, presépios e uma boneca antiga, de plástico, encostada à parede. A escritora Adília Lopes nunca deixou de comprar brinquedos. "Fiz da minha casa uma casa de bonecas", diz.Nem sempre foi assim. "Aos 12 anos não queria mais os brinquedos e foram todos para a sobrinha da criada", conta, sentada numa salinha, em sua casa, em Lisboa, rodeada de papéis deixados pelo chão ou presos nas paredes, louças, jarros, roupas e cacos de porcelanas antigas, que "isto de ter crianças-gatos" tem as suas consequências. A escritora vive com João Paulo, um gato cinzento e gordo, com três anos, e Lucinda, uma gatinha malhada de oito meses.Mas o apelo dos brinquedos foi-se tornando irresistível e no mesmo ano em que deu o seu espólio comprou uma boneca nos Países Baixos. Uma holandesa de olhos azuis e tranças louras - como Adília Lopes gostaria de ter sido. Na viagem, no Sud-Express, mãe e filha revezavam-se nas saídas da cabina, de maneira a jamais deixar a boneca sozinha. Depois, continuou a comprar brinquedos. Em criança, no Bazar Thadeus, na Baixa, que importava bonecas italianas - as Fugga - ou jogos alemães e ingleses. Já adulta, à porta do Hospital da Estefânia, a um feirante que vendia trens de cozinha de plástico, de cores fortes e coldres com pistolas de "cowboy".Os seus brinquedos são mesmo importantes e Adília lembra o dia em que correu um primo com o "vasculho" porque este lhe virou uma boneca de cabeça para baixo. "Fiquei furiosa, insultei-o e tiveram que nos vir apartar". A escritora também não compreende como é que há quem não os valorize: "De fronte [no prédio do outro lado da rua] havia uma rapariga que tinha uns brinquedos muito giros, dos quais eu gostava muito. Quando ela se casou, os pais obrigaram-na a levar os brinquedos e os livros de criança e ela sentiu uma vergonha muito grande. Eu achei muito feio ela não querer os brinquedos".Em criança, Adília Lopes "adorava estar doente" para poder ficar na cama a compor e a dispor das figurinhas de feltro dos "Fuzzy Felt". Em bases aderentes, prendem-se bailarinas em pontas, animais da quinta ou personagens de histórias infantis.A escritora lamenta nunca lhe terem chegado as bonecas de porcelana da avó. Assim como gostava de ter tido uma de celulóide, como seriam as do tempo da sua mãe. Muitos dos brinquedos que guarda foram da mãe, como uma mobília ou um carrinho de verga, comprado numa quermesse em Paris, que uma senhora ofereceu como prémio depois de ter recuperado um alfinete.Outra das penas de Adília Lopes é nunca ter tido uma casinha de bonecas, como a das primas, "lindissima, anos 30, que tinha sido da mãe [delas]". Da casa só lhe ficou a sanita, de porcelana e com o tampo de madeira, que é também um cinzeiro.Pelas divisões da casa Adília Lopes põe e dispõe das bonecas e dos brinquedos. Há uma sentada na varanda, suja e sem cor, sujeita às intempéries, outra pendurada na fita de um estore. Brinca com o pequeno guarda-fatos de madeira, com o frigorífico que ainda tem os pacotes de margarina, as latinhas e as garrafinhas de leite, mas já faltam os ovos. Muda-lhes os lugares e expõe-os com se fossem "bibelots". "Toda a casa é a casa das bonecas. Fiz da minha casa uma casa de bonecas". legenda: A escritora diz não compreender como é que há quem não valorize os brinquedos. Bárbara Wong, Público,14.12.2003

O MEU REINO POR UM ESPELHO, por Eduardo Prado Coelho

Já sabemos que Adília Lopes é um caso inesperado na poesia portuguesa contemporânea - inesperado porque ninguém o esperava, e desconcerta todas as categorias pré-estabelecidas. Porque Adília Lopes acredita, e ao mesmo tempo não acredita na poesia. Esta contradição tem uma expressão num poema: "Quero escrever/ histórias/ de compaixão. // Não gosto / do mistério /e da imaginação // Mas assim / não se escreve." E noutro poema: "Quanto mais prosaico / mais poético." Falo do livro editado pela &etc, que tem o duplo título de "Le Vitrail la Nuit" e "A Árvore Cortada". Aí se lê outro poema onde esta contradição se espelha: num poema curiosamente intitulado "Depois de ler Natércia Freire", que seria muito justamente a essência do poético como poético, Adília Lopes escreve: "Não quero escrever / mais poemas // não quero escrever / mais // E quero sempre/ escrever poemas //E quero sempre /escrever mais // Escrever /o mesmo / outra vez /haver sempre / nova vez // Não mudar / o centro / o Sol / Deus / eu // não mudar / a árvore / de lugar// Não mudar // Não me calar / e calar-me// Cavar branca /a sepultura / como quem faz / uma cama // Correr / como corre / o rio // Parar como pára / a pedra // Viver / como o caçador / que volta/ da caça // de mãos a abanar." Sublinhe-se: em primeiro lugar, aquele método de tornar as coisas mais abstractas e universalizadas, através de uma repetição em que a segunda parte está cortada dos elementos concretos: "Não quero escrever mais poemas / não quero escrever mais." Em segundo lugar, o tema da pedra que pára, o que significa que tudo é movimento e que há coisas que se estabilizam, e são essas que são. Mas mais importante de que tudo isto é outra problemática: a do centro. Em princípio, toda a subersão é descentramento, de Deus que deixa de ser centro, do homem que deixa de ser o centro da criação animal, e da ferida narcísica de um sujeito que, com Freud, deixa de ser o centro de si mesmo. Ora Adília Lopes quer manter o lugar do centro e os seus sucessivos ocupantes. Com uma aparente excepção: o poeta no lugar de Deus, não. O poeta não merece nenhum lugar especial. É o rei destronado. Se possível, um rei decapitado. Mas isso seria exagerar. Deste modo, Adília Lopes finta aqueles que a transformaram numa guarda-avançada do movimento antipoético. Mas as coisas são mais matizadas: nem pró, em contra, antes assim e o seu contrário. É claro que Adília Lopes desconfia daqueles que poetizam a partir de qualquer realidade banal e acha necessária uma reconversão permanente: "Eu escrevo / pequeno-almoço /os poetisos escrevem / almoço pequeno // Sobre a erva / sobre a relva." Esta última referência ("Le déjeuner sur l"herbe"? ) é mais enigmática. Na perspectiva de Adília Lopes, e trata-se do último trecho do livro, escrito em forma de prosa, há um contraponto a desenvolver: de um lado, a beleza que nos poderia salvar, do outro, sobrepondo-se à primeira, a bondade. E o arranque do texto diz o essencial: "Não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva." Anote-se esta diferença entre "uma" beleza e "a bondade", entre o "uma" que vulgariza e o "a" que unifica. E Adília Lopes diz-nos que a bondade se manifesta por vezes no meio da maior fealdade: "Uma pessoa capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre." Porque "se a busca da beleza nos impede de viver, então há uma beleza que nos perde. E há". Primeiro de que tudo deve existir partilha: "Se não há partilha, o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si." E mais adiante ainda: "A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e dourado. É verde e azul. Ao escrever assim parece-me que estou a evocar o poema de Rimbaud intitulado "Voyelles". A arte é um modo de lidar com a ausência. É por isso tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da presença." E aqui estamos em desacordo: há uma poesia da presença que assume a irradiação de um rosto, de um gesto ou de um objecto. Isso não impede que exista também uma poesia da ausência. A presença/ausência não recorta a distinção entre poesia e ética da bondade. Em relação a este livro, discretamente publicado em Fevereiro, temos ainda outros pontos a salientar. Em primeiro lugar, o mecanismo dessacralizante: "Vivo / dia a dia / sou / uma mulher-a-dias // Dia a dia / perto porto parto da eternidade." Este mecanismo repete-se através da recondução de determinadas palavras: "Não tenho / paciência / para os outros / / Não sou / cristã // Ou / não estou / cristã // Tenho / uma crista // Sou vaidosa / como Eva// Sou má // Sou mazinha." Aqui a conversão faz-se entre "cristã" e "crista", para determinar o tema da vaidade e depois da maldade. Ou um jogo mais simples entre as palavras: "Um descampado / com uma campa." Ou ainda: "Primeiro / pedi amor / e não pedi / oiro // Depois pedi oiro e não pedi / amor // Depois / só pedi / pão // depois / perdi-me." Ou ainda: "Estou violenta/ estou violeta." Aí é que chegamos à linha rasa da pobreza: "Em cada esquina / um inimigo // Em cada rosto / desigualdade / Terra da mesquinhez." E por fim: "De que me serve / A beleza deste mundo / se não tenho dinheiro para viver? // Dói-me a beleza / deste mundo / / Dói-me a fealdade / deste mundo." Mas neste livro há uma vocação positiva e ascensional que contraria algumas expectativas. Adília Lopes é clara quando afirma logo de início: "Acabou / o tempo das rupturas // Quero / ser / reparadora / de brechas." Temos assim uma poesia que muitas vezes sobe para nos conduzir do passo trôpego da prosa até ao que habitualmente se chama "poesia" (embora haja sempre na autora uma reserva, uma reticência). Daí o aparecimento do tema dos espelhos: "A solidão / é um beco / forrado de espelhos / onde o eco / do grito / corta / como facas // E o beco / é fechado / como um cubo / gelado." Quanto a espelhos, eles são o princípio do mal: "Nos quartos / das freiras/ não / há espelhos // Nas igrejas / não há /espelhos // Os espelhos / são o Diabo." Só que o mal está já dentro de nós: "Um espelho / não é/ uma janela //Um espelho / não é / um quadro // Quem espreita / por meus olhos / no espelho / sou eu // E eu / sou eu / Não há enigmas." A poesia de Adília Lopes é um enigma que neste livro se confirma e adensa. Eduardo Prado Coelho, in SUP. MIL FOLHAS, Publico, 15.04.2006

art crochet (Patricia Waller)