agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sábado, 24 de outubro de 2009

O macaco nas termas | Adília Lopes

O macaco nas termas

Era uma vez um macaco que era uma espécie de pega porque roubava coisas e que era uma espécie de cuco porque punha as coisas roubadas na casa dos outros e que era uma espécie de Cupido porque forjava enredos amorosos. E era uma vez umas termas cheias de velhos muito velhos. Assim o macaco roubou umas fraldas cheias de chichi a uma velha e foi escondê-las no quarto de um velho sem uma perna e sem outras coisas. Espalhou-se o boato de que os velhos tinham um caso e de que tinham tido uma aventura.

O macaco fazia isto com toda a gente, sem deixar ninguém de fora, por muito estropiado e desajeitado que estivesse. Assim o macaco encarregou-se da animação cultural das termas pois não há animação cultural sem animação amorosa.

E os velhos andavam radiantes, pois se não tinham o proveito tinham a fama.

Adília Lopes, in A Bela Acordada

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Poemas Novos | Adília Lopes

Em
cada dia faço
muito pouco

Mas
o pouco
que faço
não é louco

E
quando é louco
(às vezes é) que seja pouco

Que seja muito pouco

Adília Lopes

domingo, 4 de outubro de 2009

Adília Lopes

"Arrependo-me muito de ter deitado fora o filme que fiz em 74 com a Margarida Rainha dos Santos. Ela é que segurou na câmara Super 8 emprestada pelo Manuel João Ramos. Filmámos uma boneca de plástico comprada nos Armazéns do Chiado por 19 escudos. Filmámos a boneca a arder dentro da gaiola que já não servia porque tinha morrido lá um periquito com uma pneumonia. Reguei a boneca com álcool e deitei-lhe para cima um fósforo a arder. Depois afastei-me para a Guida filmar a queima da boneca sem eu aparecer no filme. Filmou-se a boneca a arder até a boneca deixar de arder por já terardido toda. Foi no terreiro em frente ao Observatório Astronómico em cima dum marco de pedra." Adília Lopes, in Irmã Barata, Irmã Batata

sábado, 3 de outubro de 2009

Os cordéis | Adília Lopes

Os cordéis


Passava os dias a dar nós em cordéis

para desfazer os nós a seguir

não tinha ninguém para a aplaudir

nem esperava Ulisses

mas continuava

aquilo não era um passatempo

os cordéis sem nós

serviam para desfazer os nós

enquanto os embrulhos trouxeram cordéis

as sobrinhas não estranharam

mas quando os cordéis se tornaram raros

lembraram-se de que ela na juventude

fora capaz de seguir cinco conversas diferentes

ao mesmo tempo

como Napoleão era capaz de ditar

dez cartas diferentes

ao mesmo tempo

só que a guerra e os bailes no consulado

tinham acabado

antes que ela se tornasse

uma grande espia

as sobrinhas convidavam forasteiros

e faziam cinco conversas diferentes

ao mesmo tempo

para a distraírem dos cordéis

mas os cordéis absorviam-na

nenhuma conversa lhe importava

as sobrinhas deitaram os cordéis fora

irritadas com aquela obstinação

ela passou a arrancar cabelos

e desfazer os nós dos cabelos

exige mais perícia do que desfazer

os nós dos cordéis

se fosse uma questão de vida ou de morte

seria como despoletar granadas

assim ela só podia perguntar

o que é mais fino do que um cabelo

para eu lhe poder dar nós?


Adília Lopes in Dobra