agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sábado, 20 de outubro de 2007

fio

atrás do espelho só há o atrás do espelho
no espelho um reflexo falso
como uma fotografia de uma felicidade muito antiga

um golpe fundo que se desprende
da teia da qual já há fio

mão

a mão perdeu o corpo.
sem serventia.

procura um pedaço de pele

Um fio liga
a um quase que


Agora só esse fio
sonhado

nada mais

espiral


Espiral


Suspender o som de todas as vozes
Suspender o som de todas as vezes
Suspender o som do que não me podes dizer
Querer percorrer velozmente
Sem pisar os espinhos
Cair numa redoma de qualquer coisa
Sem nome ainda

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

última vida


uma rede que esmaga
o voo atrevido de um gato
na sua última vida

depois da rede
nunca se sabe

a l



"Estava habituada a suicidar-me todos os dias."

Adília Lopes, PÚBLICO, 8 de Setembro de 2002

contos

O Príncipe dá um beijo tão forte na boca da Bela Adormecida que lhe arranca um bocado da boca. A Bela Adormecida fica tão contente por ser acordada pelo Príncipe que lhe dá um abraço tão apertado que o estrangula e se estrangula.

A Branca de Neve, a Bela Adormecida e a Gata Borralheira tomam as três juntas banho na mesma tina de zinco cheia de água morna e sais de banho. Estranho banho, dirão. Ainda mais estranho se pensarem que as três vão ficar lá até derreterem completamente como três cubos de açúcar em café ou chá.

Adília Lopes, PÚBLICO, 7 de Abril de 2002

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

homem barata

corpo / formação
corpo de formação
exagero quase
devir animal
simiesco

humano animal
transferir
de quem para o quê

homem barata
homem batata
irmã barata
irmã batata

a água não espelha a lua


a água não espelha a lua,
perdeu, pois, a sua função.
um lençol muito branco aquece
um corpo vazio.
(um copo vazio)

mesmo sem reflexo
vejo

estilhaços da jarra
gostava de ter sido.

O que me custou












O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido

Adília Lopes

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

#1



Nenhuma navalha consegue cortar as teias opacas da incerteza.

#

A onda líquida e fria é sempre a distância mais curta entre dois pontos.

#


Romper as palavras, até ficar só a pele.
Gastar a pele, até só ficar o sangue.
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Mudanças



Uma data no calendário, quase apenas isso.
Enquanto dela tiver memória, será sempre mais que quase isso.

Depois das dúvidas, as quase certezas.
Depois das quase certezas, o apaziguamento.

Nunca mais nada será igual,
mas também nunca mais o seria.

A vida é uma repetição de ciclos de diferenças.
E às vezes é preciso mudar, para que tudo continue quase na mesma.
Posted by Picasa

terça-feira, 14 de agosto de 2007

NÓS

Tenho nós
dentro de mim
que tenho
de desatar


Tenho nós
dentro de mim
que me estão
a estrangular

Adília Lopes

A FACA


A solidão é um beco forrado / de espelhos onde o eco do grito corta / como facas
Adília Lopes

Adília Lopes / Joana Vasconcelos



Faço crochet
o crochet faz-me
e nisto me desato

O peite


o peite


que a madrasta lle deu
levaba veleno nos dentes
pero tendo o pelo rapado
non lle fixo mal ningún

cando llo tiraron
espetouno no limoeiro
que chorou desde entón
froitos acedos críticas
sen vergonza

advertírana de nena
que non debía peitearse
diante dos homes
(se era transgresión pecadenta
ou ritual máxico nunca soubo)


por iso cando lle medrou o cabelo
levouno desguedellado
como os niños dos paxaros


Marilar Aleixandre, Catálogo de Venenos