agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

domingo, 15 de junho de 2008

"Os portugueses nunca se querem ver"


"Os portugueses nunca se querem ver"


Aos 33 anos, Joana Vasconcelos faz em França aquela que é, até agora, a sua maior exposição - 13 peças na Passage du Désir, mais três no Instituto Camões. Qual é a importância desta exposição neste momento?É entrar num mercado que me desconhece completamente com uma muito boa fatia do meu trabalho. São 16 peças que, juntas, dão uma boa ideia do que eu sou como artista. Depois, houve um lado de construir uma exposição de forma realmente profissional, com uma arquitectura de montagem, desenho de luz... O que aqui se vê é uma perspectiva sobre o meu trabalho. Isto é uma agência de publicidade muito relacionada com o "design", a moda - o comissariado foi também feito a partir desses interesses. Será uma perspectiva mais ligada ao "design" e à moda. Não é como a exposição que fiz no Mosteiro da Cartuja, de Sevilha, que tinha um carácter muito feminista. À parte disso, o que lhe interessou mostrar neste contexto?Por ser França e haver uma grande comunidade portuguesa, fiz uma exposição que mostra que Portugal também é contemporâneo. Uma das peças que eu trouxe é a mesa com os "tupperware" ["Plastic Party", 1997] e exigi que o "catering" fosse feito com produtos portugueses. Em Espanha nunca exigi isso, nem em Portugal. No fundo, isso é a contemporaneidade: é ser capaz de pegar no passado e torná-lo futuro. E as pessoas que vêm aqui, percebem que estou a dar a volta a qualquer coisa. O constante pegar em objectos do quotidiano ou numa artesania ligada às tradições portuguesas é também uma forma de exponenciar relações entre um tempo passado e um tempo futuro?É estar a expor uma realidade escondida, uma realidade que toda a gente partilha mas de que ninguém fala. Nós os portugueses somos muito assim: partilhamos imensas coisas das quais não falamos. A sexualidade é uma delas. A libertação da mulher é outra. A guarita cheia de espelhos ["Spot Me", 1999] tem a ver com isso. Aquelas guaritas serviam, entre outras coisas, para vigiar comícios, portanto, eram objectos da ditadura. Foram todas queimadas, eu salvei uma e enchi-a de espelhos, mas quando entramos lá dentro [por um efeito de reflexos] não nos vemos. É como a ditadura, e como os portugueses: nunca se querem ver a si mesmos. Como não olhamos para nós próprios, criamos uma impossibilidade de beleza. Vanessa Rato , Público, 18.01.2005

JOANA VASCONCELOS A ARTISTA PRAGMÁTICA

Na Fundição de Oeiras, Joana Vasconcelos tem um grande atelier com áreas de trabalho diferentes, onde há muito espaço para as peças que ainda não vendeu e que vai levando a algumas das exposições no estrangeiro. Na agenda de 2007 já marcou a passagem por cidades como Istambul, São Francisco ou Miami. "As peças vêm quase todas para aqui para serem montadas", explica a escultora de 34 anos, uma das artistas mais internacionais da sua geração e a autora de A Noiva, o grande lustre feito com 20 mil tampões e aço inox que no ano passado abria a exposição principal da Bienal de Veneza.No atelier, que lhe foi cedido há três anos pela Câmara Municipal de Oeiras, depois de ter ganho o Prémio Marquês de Pombal para jovens artistas, Joana Vasconcelos tem madeiras empilhadas junto a uma parede, prateleiras e prateleiras de caixotes, obras espalhadas por toda a parte. "Este é um dos lugares fundamentais do meu dia", diz, falando de uma rotina marcada por reuniões com colaboradores permanentes (tem três) ou pontuais, idas ao atelier do Bairro da Boavista, o primeiro que teve, ou à Metalúrgica de Algés, onde parte das suas peças que envolvem metais são feitas pelas "mãos valiosas do sr. Manuel e do sr. Vítor", que a acompanham desde o início."É muito importante para mim saber que hoje posso trabalhar com várias pessoas, mas é também uma grande responsabilidade", reconhece, olhando para as duas colaboradoras que cuidadosamente vão colando talheres de plástico num grande coração preto inspirado na arte da filigrana. "Há muitas coisas que dependem de mim e isto de ser escultor não é uma profissão que se procure nos classificados dos jornais. É um processo. Hoje sou artista, mas amanhã posso não ser."A artista tem uma visão pragmática da sua actividade e analisa com frieza o comportamento do mercado no que diz respeito à circulação de obras de arte contemporâneas. "Tenho uma relação complicada com o mercado português, não é graças a ele que sobrevivo. Portugal gosta pouco de comprar Joana Vasconcelos." É no esforço de internacionalização que a artista tem apostado: exposições individuais em Madrid, S. Paulo ou Paris; colectivas em Nova Iorque, Tokamachi (Japão) ou Oslo. Sem esquecer Portugal, onde inaugurou há pouco tempo uma instalação em que subverte a cultura clássica e junta as ninfas de A Ilha dos Amores, de Camões, ao deus Baco, cobrindo de croché (técnica que usa habitualmente) uma série de esculturas kitsch de jardim (Museu da Electricidade, até 1 de Outubro). Joana Vasconcelos terminou o curso de artes plásticas do Ar.Co em 1996 e desde então não tem parado de organizar exposições. No início fazia quatro ou seis por ano, hoje chega às 12 e tem de recusar alguns convites. Apesar da presença em museus estrangeiros - está agora a preparar a sua participação numa colectiva que vai passar por três cidades mexicanas em 2007 -, lamenta não estar mais representada nas colecções portuguesas (a Gulbenkian não tem peças suas e a Fundação de Serralves tem apenas uma, "pequena"). "Tenho mais obras nas privadas do que nas públicas", diz, dando como exemplo a Colecção António Cachola, a do futuro Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Porquê? "O mercado está habituado a que os artistas ofereçam sempre o mesmo produto e chega a reagir mal quando isso não acontece", comenta, acrescentando trabalhar materiais diferentes é absolutamente fundamental. "Talvez a versatilidade seja um dos dados mais importantes nas minhas peças. Estou sempre à procura porque tenho medo de cair na tentação de repetir a fórmula. Seria fácil passar do lustre de tampões à sanita-pensos-rápidos, mas isso não me deixaria satisfeita. Na pintura é mais difícil variar do que na escultura, onde as possibilidades são hoje quase infinitas."Aos que a acusam de criar peças imediatistas, responde: "Acho que elas comunicam de forma directa com as pessoas, mas isso não quer dizer que sejam simples ou imediatistas. Se ficam na memória e se complicam o sistema de quem as vê, não podem sê-lo."Gostando de perceber o que fica na cabeça dos espectadores, diz com frequência que hoje trabalha mais as ideias do que os materiais e que as suas obras nascem no caderno que traz consigo. É provável que a que está a preparar para a cafeteria da Casa da Música, e da qual não quer adiantar pormenores, tenha já um esboço nas suas páginas. Os ingredientes deverão ser os de sempre: materiais do quotidiano que, através de um imaginário marcado por temas das cultura portuguesa ou pela arquitectura, ganham outra dimensão nas mãos da artista. Flores do Meu Desejo (1996), Ponto de Encontro (2000), A Noiva (2001), Burka (2002), Coração Independente (2004) e A Ilha dos Amores (2006) são disso exemplo. "Sou muito observadora. Estou sempre atenta aos pormenores, aos desvios no detalhe, às coisas que não batem certo ou estão simplesmente fora do lugar", resume, dizendo ser influenciada por tudo o que a rodeia. "No Coração Independente fui buscar a filigrana dos corações de Viana porque queria um "ícone" do luxo português, queria pegar numa peça de prestígio ligada ao universo popular e trazê-la para a contemporaneidade."Joana Vasconcelos tem já preparado um calendário de exposições até 2008, onde Portugal não está ainda inscrito. A artista plástica vai mostrar o seu trabalho nos Estados Unidos, Turquia, Brasil, Áustria e Reino Unido. "Sou responsável por outras pessoas e tenho vários projectos em simultâneo. Preciso de ser organizada, pragmática." Lucinda Canelas, Público, 13.08.2006

Todos os meus poemas são poemas eróticos



O título: o livro deveria antes chamar-se "Rés-do-Chão", e isso só não aconteceu por razões que a autora desfia numa nota (outro aspecto original num livro de poesia: este tem notas, longas e altamente esclarecedoras), que nos leva até aos Evangelhos, à "Branca de Neve" de João César Monteiro, a Marguerite Yourcenar e aos poetas João Luís Barreto Guimarães e Eugénio de Andrade. A história deste título é parte da vida de Adília Lopes, do mesmo modo que cada palavra do livro o é, numa poesia que, falando das coisas mais íntimas dessa vida, não é autobiográfica (já pela simples razão de a autora Adília Lopes não ser a Maria José Fidalgo dessa vida). O jogo é simples: neste, como em tantos outros livros de Adília, o poeta fala da vida de certas palavras na sua vida, ou da sua vida com certas palavras - muito frequentemente as dos outros, de muitos que escreveram (e falaram) antes. É tudo uma questão de palavras. Mas agora algumas dessas palavras têm um peso especial, quando postas na boca - nas páginas e nas notas - de um poeta. O título, por exemplo, não só tem uma história, como também dá azo, em mais uma nota, a uma clara declaração de princípios políticos por Adília Lopes (contra o amor do poder, pelo poder do amor). Os poetas não costumam fazer isto. Adília faz isto - isto e, como sabemos, muitas outras coisas "poeticamente incorrectas". O poeta, diz, precisa de correr riscos.
Um dos riscos da Adília é o das notas. Por exemplo o risco de a nota c) deste livro ser confundida com uma confissão lamechas, "ridícula e impudica", como ela própria reconhece. Mas não é nada disso. Para mim, esta nota (sobre a morte da gata Ofélia) é qualquer coisa de clássico, a que os gregos chamavam "trenos", um canto de lamentação pela morte de alguém - homem ou gato.Mas volto ainda ao título, que já me fugia: o deste livro quer dizer exactamente o quê? Quer dizer: à poesia o que é da poesia. Mas que coisa é, afinal, da poesia? Tudo!
A divisa da poesia de Adília Lopes é a de uma tradição que já não é o que foi, mas continua a ser a de Adília, a tradição dos humanistas que diz: "Nada do que é humano me é estranho." A começar pela poesia que outros escreveram antes de mim, ou aqui ao lado. Adília saqueia sem pudor (e não há que tê-lo) a sua experiência e a dos outros. Neste livro, isso torna-se de novo mais que evidente: da poesia popular a muitos poetas ditos cultos, das adivinhas e anedotas dos amigos a pintores e autores estrangeiros, franceses e ingleses, e na própria língua deles.Mas não larguei ainda o título: o título está numa capa, naturalmente, e está aí para ser lido, naturalmente. Ora, este título quase não se lê. E este é outro dos lados mais interessantes do novo livro de Adília. A capa é um teste. À primeira impressão, diríamos: não se vê, não vai vender. Mas não terá de ser necessariamente assim. Na livraria, hoje, o livro é uma de duas coisas: ou um "objecto" (versão nobre, e por isso vendável em tempos de novo-riquismo bacoco), ou "mercadoria consumível", para usar e deitar fora (versão pobre, mas rentável para alguns editores e autores). O miolo, a substância, literária ou outra, pouco contam. Ora, esta capa do livro da Adília é um teste e um achado: um céu constelado, mas com cores de terra, o "trompe-l'oeil" de uma impressão imperfeita (mas que é mesmo para ser assim, não é por a & Etc. querer poupar na tinta), uma mandala, ou a vista de qualquer célula ao microscópio, ou a representação de um universo com letras evanescentes, que - e aqui vem o truque comercialmente infalível - nos obrigam a aproximar muito o livro, quase a cheirá-lo, para as ler. E quem o chega assim ao nariz, acaba por abri-lo e, quem sabe, lê-lo.Não se pode falar "da" poesia deste livro. Eu só poderia falar "dos" poemas deste livro, de cada um deles. Mas isso levaria tempo de mais.
Para abreviar, direi que os poemas deste livro falam do que podem e têm à mão, e que o seu procedimento básico é terrorista e anatómico (já era tempo de se reabilitarem estes dois termos, completamente degradados por terem caído nas mãos e nas bocas erradas: o terrorismo, nas de George W. Bush e a anatomia da poesia, há bastante mais tempo, nas da crítica estruturalista). E como funciona então a mão de Adília Lopes? A terrorista saqueia alegremente a tradição e os amigos (a diferença em relação aos outros - poetas, entende-se - é que o faz às claras e sem complexos, que é coisa que um artista não pode ter); e a anatomista transplanta, amputa, decepa, decapita - palavras, versos, letras, imagens. Não por crueldade, não por sede de sangue ou de vingança, mas por... método filosófico (há quem diga que é por ser uma poeta pós-moderna, ou "pop", mas isso não adianta, porque não diz nada). E Adília pratica este método em várias línguas, português, francês, inglês, com o mesmo à-vontade. Mas, no meio de tudo isto, de terrorismos e anatomias, a norma também lá está, aquela que conhecíamos melhor e nos reconforta e confirma ("nihil humanum..."). A poesia é também, sempre foi - e Adília Lopes sabe muito bem praticar essa arte - a arte de criar envolvimentos (Osvaldo Silvestre já escreveu espraiadamente sobre "As Lenga-Lengas da Menina Adília"), sensíveis (dos sentidos), afectivos (da alma) e mentais (das ideias), pondo as palavras a conviver, em encontros harmoniosos ou aos encontrões paródicos e paradoxais, a responder umas às outras, dando música ao ouvido ou abrindo clareiras no espírito de quem lê. O próprio saque da tradição, levado às últimas consequências neste livro, é praticado por Adília de forma que eu diria por vezes genial. Casos há nos quais, em duas palavras, se capta a verdadeira quintessência de um poeta. A anatomia e o saque tornam-se então destilação. Como naquela "leitura" invulgarmente certeira de Ruy Belo e Herberto Helder, na página 26. Quando aí se escreve "Eu jogo / eu juro", diz-se que em Herberto a poesia é um lance de dados feroz e um exorcismo, e quando se conclui o poema com "Eu rezo / eu rio", isso significa que se leu bem a poesia de Ruy Belo como uma religião e uma fonte (um rio) de alegria.Seja qual for o procedimento (a poesia de Adília Lopes é muito uma poesia de procedimentos intencionais, que resultam numa espécie de jogo, consigo própria, com a tradição, com o mundo e com o leitor, e é por isso que facilmente se lhe apõe a etiqueta de "pós-moderna": veja-se o que sobre ela escreveu Lindeza Diogo), esta poesia, aparentemente ingénua, nunca pode ser lida ingenuamente. Tem de ser sempre sobre-lida (com o risco de ser treslida), lida com, à contraluz de..., para, numa conclusão que vem sempre, nos deixar perceber que "isto" é um jogo (por ex. o poema "Melancolia", p. 29; ou o poema proustiano "Não busco/o tempo/perdido", p. 30). O que nos faz perceber esse jogo é o "regresso a casa" do poema, depois dessas deambulações "eruditas" (que o são).
Regresso a casa no verdadeiro sentido do termo: à experiência de um eu que se expõe como autobiográfico e desestabiliza o leitor (o que é a melhor coisa que pode acontecer com a leitura de um poema). É uma poesia inteligente, com alguma astúcia e, neste livro mais do que em anteriores, alguma melancolia (vd. "Coisas de cerâmica", lido no palácio Fronteira em Fevereiro, contra a guerra do Iraque). De facto, este livro soa, em muitas páginas, a canto do cisne. Poesia inteligente - não a daquela inteligência que, diz Adília em mais uma nota, muitas vezes está hoje ao serviço da estupidez -, quer no seu "experimentalismo" (aqui muito politizado: "Continuamos / amos // Continuo / nua", p. 35), quer na sua generosa e sensível manipulação da tradição, como num belo poema a partir do pintor americano Edward Hopper (pp. 46-47).E há ainda a "metapoesia" de Adília Lopes neste livro. O que é isto? São aqueles poemas a que os críticos se agarram quando não sabem o que dizer da poesia de um livro. Porque julgam - mas as mais das vezes enganam-se redondamente - que eles são um guia infalível, e tomam-nos por uma espécie de "reader's digest" ou de "vademecum" para a poesia do autor. É muitas vezes fatal, pelo menos hoje, e já nos modernistas assim era. Os poetas querem-nos levar à certa com essa poesia sobre (a sua) poesia. Adília Lopes também faz isso, em dois ou três poemas deste livro. Recomendo ao leitor que queira entrar no jogo da autora o da página 76, "Todos os meus/poemas/são eróticos..." Mas depois terá de reler todo o livro para confirmar a asserção. Público, 22.11.2003, Raquel Ribeiro

Adília Lopes habita uma casa de bonecas, Bárbara Wong

Por entre objectos antigos e antiguidades, espreitam os brinquedos. O cãozinho de peluche revê-se no espelho emoldurado com rosas de prata. O pequeno porquinho de barro toca um tambor colorido, lado a lado com um severo Cristo, de olhos postos no céu, pendurado numa cruz de madeira com mais de meio metro de altura. Em cima de um velho baú estão outras figuras religiosas, anjos, Nossas Senhoras, presépios e uma boneca antiga, de plástico, encostada à parede. A escritora Adília Lopes nunca deixou de comprar brinquedos. "Fiz da minha casa uma casa de bonecas", diz.Nem sempre foi assim. "Aos 12 anos não queria mais os brinquedos e foram todos para a sobrinha da criada", conta, sentada numa salinha, em sua casa, em Lisboa, rodeada de papéis deixados pelo chão ou presos nas paredes, louças, jarros, roupas e cacos de porcelanas antigas, que "isto de ter crianças-gatos" tem as suas consequências. A escritora vive com João Paulo, um gato cinzento e gordo, com três anos, e Lucinda, uma gatinha malhada de oito meses.Mas o apelo dos brinquedos foi-se tornando irresistível e no mesmo ano em que deu o seu espólio comprou uma boneca nos Países Baixos. Uma holandesa de olhos azuis e tranças louras - como Adília Lopes gostaria de ter sido. Na viagem, no Sud-Express, mãe e filha revezavam-se nas saídas da cabina, de maneira a jamais deixar a boneca sozinha. Depois, continuou a comprar brinquedos. Em criança, no Bazar Thadeus, na Baixa, que importava bonecas italianas - as Fugga - ou jogos alemães e ingleses. Já adulta, à porta do Hospital da Estefânia, a um feirante que vendia trens de cozinha de plástico, de cores fortes e coldres com pistolas de "cowboy".Os seus brinquedos são mesmo importantes e Adília lembra o dia em que correu um primo com o "vasculho" porque este lhe virou uma boneca de cabeça para baixo. "Fiquei furiosa, insultei-o e tiveram que nos vir apartar". A escritora também não compreende como é que há quem não os valorize: "De fronte [no prédio do outro lado da rua] havia uma rapariga que tinha uns brinquedos muito giros, dos quais eu gostava muito. Quando ela se casou, os pais obrigaram-na a levar os brinquedos e os livros de criança e ela sentiu uma vergonha muito grande. Eu achei muito feio ela não querer os brinquedos".Em criança, Adília Lopes "adorava estar doente" para poder ficar na cama a compor e a dispor das figurinhas de feltro dos "Fuzzy Felt". Em bases aderentes, prendem-se bailarinas em pontas, animais da quinta ou personagens de histórias infantis.A escritora lamenta nunca lhe terem chegado as bonecas de porcelana da avó. Assim como gostava de ter tido uma de celulóide, como seriam as do tempo da sua mãe. Muitos dos brinquedos que guarda foram da mãe, como uma mobília ou um carrinho de verga, comprado numa quermesse em Paris, que uma senhora ofereceu como prémio depois de ter recuperado um alfinete.Outra das penas de Adília Lopes é nunca ter tido uma casinha de bonecas, como a das primas, "lindissima, anos 30, que tinha sido da mãe [delas]". Da casa só lhe ficou a sanita, de porcelana e com o tampo de madeira, que é também um cinzeiro.Pelas divisões da casa Adília Lopes põe e dispõe das bonecas e dos brinquedos. Há uma sentada na varanda, suja e sem cor, sujeita às intempéries, outra pendurada na fita de um estore. Brinca com o pequeno guarda-fatos de madeira, com o frigorífico que ainda tem os pacotes de margarina, as latinhas e as garrafinhas de leite, mas já faltam os ovos. Muda-lhes os lugares e expõe-os com se fossem "bibelots". "Toda a casa é a casa das bonecas. Fiz da minha casa uma casa de bonecas". legenda: A escritora diz não compreender como é que há quem não valorize os brinquedos. Bárbara Wong, Público,14.12.2003

O MEU REINO POR UM ESPELHO, por Eduardo Prado Coelho

Já sabemos que Adília Lopes é um caso inesperado na poesia portuguesa contemporânea - inesperado porque ninguém o esperava, e desconcerta todas as categorias pré-estabelecidas. Porque Adília Lopes acredita, e ao mesmo tempo não acredita na poesia. Esta contradição tem uma expressão num poema: "Quero escrever/ histórias/ de compaixão. // Não gosto / do mistério /e da imaginação // Mas assim / não se escreve." E noutro poema: "Quanto mais prosaico / mais poético." Falo do livro editado pela &etc, que tem o duplo título de "Le Vitrail la Nuit" e "A Árvore Cortada". Aí se lê outro poema onde esta contradição se espelha: num poema curiosamente intitulado "Depois de ler Natércia Freire", que seria muito justamente a essência do poético como poético, Adília Lopes escreve: "Não quero escrever / mais poemas // não quero escrever / mais // E quero sempre/ escrever poemas //E quero sempre /escrever mais // Escrever /o mesmo / outra vez /haver sempre / nova vez // Não mudar / o centro / o Sol / Deus / eu // não mudar / a árvore / de lugar// Não mudar // Não me calar / e calar-me// Cavar branca /a sepultura / como quem faz / uma cama // Correr / como corre / o rio // Parar como pára / a pedra // Viver / como o caçador / que volta/ da caça // de mãos a abanar." Sublinhe-se: em primeiro lugar, aquele método de tornar as coisas mais abstractas e universalizadas, através de uma repetição em que a segunda parte está cortada dos elementos concretos: "Não quero escrever mais poemas / não quero escrever mais." Em segundo lugar, o tema da pedra que pára, o que significa que tudo é movimento e que há coisas que se estabilizam, e são essas que são. Mas mais importante de que tudo isto é outra problemática: a do centro. Em princípio, toda a subersão é descentramento, de Deus que deixa de ser centro, do homem que deixa de ser o centro da criação animal, e da ferida narcísica de um sujeito que, com Freud, deixa de ser o centro de si mesmo. Ora Adília Lopes quer manter o lugar do centro e os seus sucessivos ocupantes. Com uma aparente excepção: o poeta no lugar de Deus, não. O poeta não merece nenhum lugar especial. É o rei destronado. Se possível, um rei decapitado. Mas isso seria exagerar. Deste modo, Adília Lopes finta aqueles que a transformaram numa guarda-avançada do movimento antipoético. Mas as coisas são mais matizadas: nem pró, em contra, antes assim e o seu contrário. É claro que Adília Lopes desconfia daqueles que poetizam a partir de qualquer realidade banal e acha necessária uma reconversão permanente: "Eu escrevo / pequeno-almoço /os poetisos escrevem / almoço pequeno // Sobre a erva / sobre a relva." Esta última referência ("Le déjeuner sur l"herbe"? ) é mais enigmática. Na perspectiva de Adília Lopes, e trata-se do último trecho do livro, escrito em forma de prosa, há um contraponto a desenvolver: de um lado, a beleza que nos poderia salvar, do outro, sobrepondo-se à primeira, a bondade. E o arranque do texto diz o essencial: "Não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva." Anote-se esta diferença entre "uma" beleza e "a bondade", entre o "uma" que vulgariza e o "a" que unifica. E Adília Lopes diz-nos que a bondade se manifesta por vezes no meio da maior fealdade: "Uma pessoa capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre." Porque "se a busca da beleza nos impede de viver, então há uma beleza que nos perde. E há". Primeiro de que tudo deve existir partilha: "Se não há partilha, o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si." E mais adiante ainda: "A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e dourado. É verde e azul. Ao escrever assim parece-me que estou a evocar o poema de Rimbaud intitulado "Voyelles". A arte é um modo de lidar com a ausência. É por isso tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da presença." E aqui estamos em desacordo: há uma poesia da presença que assume a irradiação de um rosto, de um gesto ou de um objecto. Isso não impede que exista também uma poesia da ausência. A presença/ausência não recorta a distinção entre poesia e ética da bondade. Em relação a este livro, discretamente publicado em Fevereiro, temos ainda outros pontos a salientar. Em primeiro lugar, o mecanismo dessacralizante: "Vivo / dia a dia / sou / uma mulher-a-dias // Dia a dia / perto porto parto da eternidade." Este mecanismo repete-se através da recondução de determinadas palavras: "Não tenho / paciência / para os outros / / Não sou / cristã // Ou / não estou / cristã // Tenho / uma crista // Sou vaidosa / como Eva// Sou má // Sou mazinha." Aqui a conversão faz-se entre "cristã" e "crista", para determinar o tema da vaidade e depois da maldade. Ou um jogo mais simples entre as palavras: "Um descampado / com uma campa." Ou ainda: "Primeiro / pedi amor / e não pedi / oiro // Depois pedi oiro e não pedi / amor // Depois / só pedi / pão // depois / perdi-me." Ou ainda: "Estou violenta/ estou violeta." Aí é que chegamos à linha rasa da pobreza: "Em cada esquina / um inimigo // Em cada rosto / desigualdade / Terra da mesquinhez." E por fim: "De que me serve / A beleza deste mundo / se não tenho dinheiro para viver? // Dói-me a beleza / deste mundo / / Dói-me a fealdade / deste mundo." Mas neste livro há uma vocação positiva e ascensional que contraria algumas expectativas. Adília Lopes é clara quando afirma logo de início: "Acabou / o tempo das rupturas // Quero / ser / reparadora / de brechas." Temos assim uma poesia que muitas vezes sobe para nos conduzir do passo trôpego da prosa até ao que habitualmente se chama "poesia" (embora haja sempre na autora uma reserva, uma reticência). Daí o aparecimento do tema dos espelhos: "A solidão / é um beco / forrado de espelhos / onde o eco / do grito / corta / como facas // E o beco / é fechado / como um cubo / gelado." Quanto a espelhos, eles são o princípio do mal: "Nos quartos / das freiras/ não / há espelhos // Nas igrejas / não há /espelhos // Os espelhos / são o Diabo." Só que o mal está já dentro de nós: "Um espelho / não é/ uma janela //Um espelho / não é / um quadro // Quem espreita / por meus olhos / no espelho / sou eu // E eu / sou eu / Não há enigmas." A poesia de Adília Lopes é um enigma que neste livro se confirma e adensa. Eduardo Prado Coelho, in SUP. MIL FOLHAS, Publico, 15.04.2006

art crochet (Patricia Waller)