Por entre objectos antigos e antiguidades, espreitam os brinquedos. O cãozinho de peluche revê-se no espelho emoldurado com rosas de prata. O pequeno porquinho de barro toca um tambor colorido, lado a lado com um severo Cristo, de olhos postos no céu, pendurado numa cruz de madeira com mais de meio metro de altura. Em cima de um velho baú estão outras figuras religiosas, anjos, Nossas Senhoras, presépios e uma boneca antiga, de plástico, encostada à parede. A escritora Adília Lopes nunca deixou de comprar brinquedos. "Fiz da minha casa uma casa de bonecas", diz.Nem sempre foi assim. "Aos 12 anos não queria mais os brinquedos e foram todos para a sobrinha da criada", conta, sentada numa salinha, em sua casa, em Lisboa, rodeada de papéis deixados pelo chão ou presos nas paredes, louças, jarros, roupas e cacos de porcelanas antigas, que "isto de ter crianças-gatos" tem as suas consequências. A escritora vive com João Paulo, um gato cinzento e gordo, com três anos, e Lucinda, uma gatinha malhada de oito meses.Mas o apelo dos brinquedos foi-se tornando irresistível e no mesmo ano em que deu o seu espólio comprou uma boneca nos Países Baixos. Uma holandesa de olhos azuis e tranças louras - como Adília Lopes gostaria de ter sido. Na viagem, no Sud-Express, mãe e filha revezavam-se nas saídas da cabina, de maneira a jamais deixar a boneca sozinha. Depois, continuou a comprar brinquedos. Em criança, no Bazar Thadeus, na Baixa, que importava bonecas italianas - as Fugga - ou jogos alemães e ingleses. Já adulta, à porta do Hospital da Estefânia, a um feirante que vendia trens de cozinha de plástico, de cores fortes e coldres com pistolas de "cowboy".Os seus brinquedos são mesmo importantes e Adília lembra o dia em que correu um primo com o "vasculho" porque este lhe virou uma boneca de cabeça para baixo. "Fiquei furiosa, insultei-o e tiveram que nos vir apartar". A escritora também não compreende como é que há quem não os valorize: "De fronte [no prédio do outro lado da rua] havia uma rapariga que tinha uns brinquedos muito giros, dos quais eu gostava muito. Quando ela se casou, os pais obrigaram-na a levar os brinquedos e os livros de criança e ela sentiu uma vergonha muito grande. Eu achei muito feio ela não querer os brinquedos".Em criança, Adília Lopes "adorava estar doente" para poder ficar na cama a compor e a dispor das figurinhas de feltro dos "Fuzzy Felt". Em bases aderentes, prendem-se bailarinas em pontas, animais da quinta ou personagens de histórias infantis.A escritora lamenta nunca lhe terem chegado as bonecas de porcelana da avó. Assim como gostava de ter tido uma de celulóide, como seriam as do tempo da sua mãe. Muitos dos brinquedos que guarda foram da mãe, como uma mobília ou um carrinho de verga, comprado numa quermesse em Paris, que uma senhora ofereceu como prémio depois de ter recuperado um alfinete.Outra das penas de Adília Lopes é nunca ter tido uma casinha de bonecas, como a das primas, "lindissima, anos 30, que tinha sido da mãe [delas]". Da casa só lhe ficou a sanita, de porcelana e com o tampo de madeira, que é também um cinzeiro.Pelas divisões da casa Adília Lopes põe e dispõe das bonecas e dos brinquedos. Há uma sentada na varanda, suja e sem cor, sujeita às intempéries, outra pendurada na fita de um estore. Brinca com o pequeno guarda-fatos de madeira, com o frigorífico que ainda tem os pacotes de margarina, as latinhas e as garrafinhas de leite, mas já faltam os ovos. Muda-lhes os lugares e expõe-os com se fossem "bibelots". "Toda a casa é a casa das bonecas. Fiz da minha casa uma casa de bonecas". legenda: A escritora diz não compreender como é que há quem não valorize os brinquedos. Bárbara Wong, Público,14.12.2003
agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes
domingo, 15 de junho de 2008
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