agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

domingo, 15 de junho de 2008

O MEU REINO POR UM ESPELHO, por Eduardo Prado Coelho

Já sabemos que Adília Lopes é um caso inesperado na poesia portuguesa contemporânea - inesperado porque ninguém o esperava, e desconcerta todas as categorias pré-estabelecidas. Porque Adília Lopes acredita, e ao mesmo tempo não acredita na poesia. Esta contradição tem uma expressão num poema: "Quero escrever/ histórias/ de compaixão. // Não gosto / do mistério /e da imaginação // Mas assim / não se escreve." E noutro poema: "Quanto mais prosaico / mais poético." Falo do livro editado pela &etc, que tem o duplo título de "Le Vitrail la Nuit" e "A Árvore Cortada". Aí se lê outro poema onde esta contradição se espelha: num poema curiosamente intitulado "Depois de ler Natércia Freire", que seria muito justamente a essência do poético como poético, Adília Lopes escreve: "Não quero escrever / mais poemas // não quero escrever / mais // E quero sempre/ escrever poemas //E quero sempre /escrever mais // Escrever /o mesmo / outra vez /haver sempre / nova vez // Não mudar / o centro / o Sol / Deus / eu // não mudar / a árvore / de lugar// Não mudar // Não me calar / e calar-me// Cavar branca /a sepultura / como quem faz / uma cama // Correr / como corre / o rio // Parar como pára / a pedra // Viver / como o caçador / que volta/ da caça // de mãos a abanar." Sublinhe-se: em primeiro lugar, aquele método de tornar as coisas mais abstractas e universalizadas, através de uma repetição em que a segunda parte está cortada dos elementos concretos: "Não quero escrever mais poemas / não quero escrever mais." Em segundo lugar, o tema da pedra que pára, o que significa que tudo é movimento e que há coisas que se estabilizam, e são essas que são. Mas mais importante de que tudo isto é outra problemática: a do centro. Em princípio, toda a subersão é descentramento, de Deus que deixa de ser centro, do homem que deixa de ser o centro da criação animal, e da ferida narcísica de um sujeito que, com Freud, deixa de ser o centro de si mesmo. Ora Adília Lopes quer manter o lugar do centro e os seus sucessivos ocupantes. Com uma aparente excepção: o poeta no lugar de Deus, não. O poeta não merece nenhum lugar especial. É o rei destronado. Se possível, um rei decapitado. Mas isso seria exagerar. Deste modo, Adília Lopes finta aqueles que a transformaram numa guarda-avançada do movimento antipoético. Mas as coisas são mais matizadas: nem pró, em contra, antes assim e o seu contrário. É claro que Adília Lopes desconfia daqueles que poetizam a partir de qualquer realidade banal e acha necessária uma reconversão permanente: "Eu escrevo / pequeno-almoço /os poetisos escrevem / almoço pequeno // Sobre a erva / sobre a relva." Esta última referência ("Le déjeuner sur l"herbe"? ) é mais enigmática. Na perspectiva de Adília Lopes, e trata-se do último trecho do livro, escrito em forma de prosa, há um contraponto a desenvolver: de um lado, a beleza que nos poderia salvar, do outro, sobrepondo-se à primeira, a bondade. E o arranque do texto diz o essencial: "Não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva." Anote-se esta diferença entre "uma" beleza e "a bondade", entre o "uma" que vulgariza e o "a" que unifica. E Adília Lopes diz-nos que a bondade se manifesta por vezes no meio da maior fealdade: "Uma pessoa capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre." Porque "se a busca da beleza nos impede de viver, então há uma beleza que nos perde. E há". Primeiro de que tudo deve existir partilha: "Se não há partilha, o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si." E mais adiante ainda: "A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e dourado. É verde e azul. Ao escrever assim parece-me que estou a evocar o poema de Rimbaud intitulado "Voyelles". A arte é um modo de lidar com a ausência. É por isso tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da presença." E aqui estamos em desacordo: há uma poesia da presença que assume a irradiação de um rosto, de um gesto ou de um objecto. Isso não impede que exista também uma poesia da ausência. A presença/ausência não recorta a distinção entre poesia e ética da bondade. Em relação a este livro, discretamente publicado em Fevereiro, temos ainda outros pontos a salientar. Em primeiro lugar, o mecanismo dessacralizante: "Vivo / dia a dia / sou / uma mulher-a-dias // Dia a dia / perto porto parto da eternidade." Este mecanismo repete-se através da recondução de determinadas palavras: "Não tenho / paciência / para os outros / / Não sou / cristã // Ou / não estou / cristã // Tenho / uma crista // Sou vaidosa / como Eva// Sou má // Sou mazinha." Aqui a conversão faz-se entre "cristã" e "crista", para determinar o tema da vaidade e depois da maldade. Ou um jogo mais simples entre as palavras: "Um descampado / com uma campa." Ou ainda: "Primeiro / pedi amor / e não pedi / oiro // Depois pedi oiro e não pedi / amor // Depois / só pedi / pão // depois / perdi-me." Ou ainda: "Estou violenta/ estou violeta." Aí é que chegamos à linha rasa da pobreza: "Em cada esquina / um inimigo // Em cada rosto / desigualdade / Terra da mesquinhez." E por fim: "De que me serve / A beleza deste mundo / se não tenho dinheiro para viver? // Dói-me a beleza / deste mundo / / Dói-me a fealdade / deste mundo." Mas neste livro há uma vocação positiva e ascensional que contraria algumas expectativas. Adília Lopes é clara quando afirma logo de início: "Acabou / o tempo das rupturas // Quero / ser / reparadora / de brechas." Temos assim uma poesia que muitas vezes sobe para nos conduzir do passo trôpego da prosa até ao que habitualmente se chama "poesia" (embora haja sempre na autora uma reserva, uma reticência). Daí o aparecimento do tema dos espelhos: "A solidão / é um beco / forrado de espelhos / onde o eco / do grito / corta / como facas // E o beco / é fechado / como um cubo / gelado." Quanto a espelhos, eles são o princípio do mal: "Nos quartos / das freiras/ não / há espelhos // Nas igrejas / não há /espelhos // Os espelhos / são o Diabo." Só que o mal está já dentro de nós: "Um espelho / não é/ uma janela //Um espelho / não é / um quadro // Quem espreita / por meus olhos / no espelho / sou eu // E eu / sou eu / Não há enigmas." A poesia de Adília Lopes é um enigma que neste livro se confirma e adensa. Eduardo Prado Coelho, in SUP. MIL FOLHAS, Publico, 15.04.2006

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