agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

domingo, 15 de junho de 2008

Todos os meus poemas são poemas eróticos



O título: o livro deveria antes chamar-se "Rés-do-Chão", e isso só não aconteceu por razões que a autora desfia numa nota (outro aspecto original num livro de poesia: este tem notas, longas e altamente esclarecedoras), que nos leva até aos Evangelhos, à "Branca de Neve" de João César Monteiro, a Marguerite Yourcenar e aos poetas João Luís Barreto Guimarães e Eugénio de Andrade. A história deste título é parte da vida de Adília Lopes, do mesmo modo que cada palavra do livro o é, numa poesia que, falando das coisas mais íntimas dessa vida, não é autobiográfica (já pela simples razão de a autora Adília Lopes não ser a Maria José Fidalgo dessa vida). O jogo é simples: neste, como em tantos outros livros de Adília, o poeta fala da vida de certas palavras na sua vida, ou da sua vida com certas palavras - muito frequentemente as dos outros, de muitos que escreveram (e falaram) antes. É tudo uma questão de palavras. Mas agora algumas dessas palavras têm um peso especial, quando postas na boca - nas páginas e nas notas - de um poeta. O título, por exemplo, não só tem uma história, como também dá azo, em mais uma nota, a uma clara declaração de princípios políticos por Adília Lopes (contra o amor do poder, pelo poder do amor). Os poetas não costumam fazer isto. Adília faz isto - isto e, como sabemos, muitas outras coisas "poeticamente incorrectas". O poeta, diz, precisa de correr riscos.
Um dos riscos da Adília é o das notas. Por exemplo o risco de a nota c) deste livro ser confundida com uma confissão lamechas, "ridícula e impudica", como ela própria reconhece. Mas não é nada disso. Para mim, esta nota (sobre a morte da gata Ofélia) é qualquer coisa de clássico, a que os gregos chamavam "trenos", um canto de lamentação pela morte de alguém - homem ou gato.Mas volto ainda ao título, que já me fugia: o deste livro quer dizer exactamente o quê? Quer dizer: à poesia o que é da poesia. Mas que coisa é, afinal, da poesia? Tudo!
A divisa da poesia de Adília Lopes é a de uma tradição que já não é o que foi, mas continua a ser a de Adília, a tradição dos humanistas que diz: "Nada do que é humano me é estranho." A começar pela poesia que outros escreveram antes de mim, ou aqui ao lado. Adília saqueia sem pudor (e não há que tê-lo) a sua experiência e a dos outros. Neste livro, isso torna-se de novo mais que evidente: da poesia popular a muitos poetas ditos cultos, das adivinhas e anedotas dos amigos a pintores e autores estrangeiros, franceses e ingleses, e na própria língua deles.Mas não larguei ainda o título: o título está numa capa, naturalmente, e está aí para ser lido, naturalmente. Ora, este título quase não se lê. E este é outro dos lados mais interessantes do novo livro de Adília. A capa é um teste. À primeira impressão, diríamos: não se vê, não vai vender. Mas não terá de ser necessariamente assim. Na livraria, hoje, o livro é uma de duas coisas: ou um "objecto" (versão nobre, e por isso vendável em tempos de novo-riquismo bacoco), ou "mercadoria consumível", para usar e deitar fora (versão pobre, mas rentável para alguns editores e autores). O miolo, a substância, literária ou outra, pouco contam. Ora, esta capa do livro da Adília é um teste e um achado: um céu constelado, mas com cores de terra, o "trompe-l'oeil" de uma impressão imperfeita (mas que é mesmo para ser assim, não é por a & Etc. querer poupar na tinta), uma mandala, ou a vista de qualquer célula ao microscópio, ou a representação de um universo com letras evanescentes, que - e aqui vem o truque comercialmente infalível - nos obrigam a aproximar muito o livro, quase a cheirá-lo, para as ler. E quem o chega assim ao nariz, acaba por abri-lo e, quem sabe, lê-lo.Não se pode falar "da" poesia deste livro. Eu só poderia falar "dos" poemas deste livro, de cada um deles. Mas isso levaria tempo de mais.
Para abreviar, direi que os poemas deste livro falam do que podem e têm à mão, e que o seu procedimento básico é terrorista e anatómico (já era tempo de se reabilitarem estes dois termos, completamente degradados por terem caído nas mãos e nas bocas erradas: o terrorismo, nas de George W. Bush e a anatomia da poesia, há bastante mais tempo, nas da crítica estruturalista). E como funciona então a mão de Adília Lopes? A terrorista saqueia alegremente a tradição e os amigos (a diferença em relação aos outros - poetas, entende-se - é que o faz às claras e sem complexos, que é coisa que um artista não pode ter); e a anatomista transplanta, amputa, decepa, decapita - palavras, versos, letras, imagens. Não por crueldade, não por sede de sangue ou de vingança, mas por... método filosófico (há quem diga que é por ser uma poeta pós-moderna, ou "pop", mas isso não adianta, porque não diz nada). E Adília pratica este método em várias línguas, português, francês, inglês, com o mesmo à-vontade. Mas, no meio de tudo isto, de terrorismos e anatomias, a norma também lá está, aquela que conhecíamos melhor e nos reconforta e confirma ("nihil humanum..."). A poesia é também, sempre foi - e Adília Lopes sabe muito bem praticar essa arte - a arte de criar envolvimentos (Osvaldo Silvestre já escreveu espraiadamente sobre "As Lenga-Lengas da Menina Adília"), sensíveis (dos sentidos), afectivos (da alma) e mentais (das ideias), pondo as palavras a conviver, em encontros harmoniosos ou aos encontrões paródicos e paradoxais, a responder umas às outras, dando música ao ouvido ou abrindo clareiras no espírito de quem lê. O próprio saque da tradição, levado às últimas consequências neste livro, é praticado por Adília de forma que eu diria por vezes genial. Casos há nos quais, em duas palavras, se capta a verdadeira quintessência de um poeta. A anatomia e o saque tornam-se então destilação. Como naquela "leitura" invulgarmente certeira de Ruy Belo e Herberto Helder, na página 26. Quando aí se escreve "Eu jogo / eu juro", diz-se que em Herberto a poesia é um lance de dados feroz e um exorcismo, e quando se conclui o poema com "Eu rezo / eu rio", isso significa que se leu bem a poesia de Ruy Belo como uma religião e uma fonte (um rio) de alegria.Seja qual for o procedimento (a poesia de Adília Lopes é muito uma poesia de procedimentos intencionais, que resultam numa espécie de jogo, consigo própria, com a tradição, com o mundo e com o leitor, e é por isso que facilmente se lhe apõe a etiqueta de "pós-moderna": veja-se o que sobre ela escreveu Lindeza Diogo), esta poesia, aparentemente ingénua, nunca pode ser lida ingenuamente. Tem de ser sempre sobre-lida (com o risco de ser treslida), lida com, à contraluz de..., para, numa conclusão que vem sempre, nos deixar perceber que "isto" é um jogo (por ex. o poema "Melancolia", p. 29; ou o poema proustiano "Não busco/o tempo/perdido", p. 30). O que nos faz perceber esse jogo é o "regresso a casa" do poema, depois dessas deambulações "eruditas" (que o são).
Regresso a casa no verdadeiro sentido do termo: à experiência de um eu que se expõe como autobiográfico e desestabiliza o leitor (o que é a melhor coisa que pode acontecer com a leitura de um poema). É uma poesia inteligente, com alguma astúcia e, neste livro mais do que em anteriores, alguma melancolia (vd. "Coisas de cerâmica", lido no palácio Fronteira em Fevereiro, contra a guerra do Iraque). De facto, este livro soa, em muitas páginas, a canto do cisne. Poesia inteligente - não a daquela inteligência que, diz Adília em mais uma nota, muitas vezes está hoje ao serviço da estupidez -, quer no seu "experimentalismo" (aqui muito politizado: "Continuamos / amos // Continuo / nua", p. 35), quer na sua generosa e sensível manipulação da tradição, como num belo poema a partir do pintor americano Edward Hopper (pp. 46-47).E há ainda a "metapoesia" de Adília Lopes neste livro. O que é isto? São aqueles poemas a que os críticos se agarram quando não sabem o que dizer da poesia de um livro. Porque julgam - mas as mais das vezes enganam-se redondamente - que eles são um guia infalível, e tomam-nos por uma espécie de "reader's digest" ou de "vademecum" para a poesia do autor. É muitas vezes fatal, pelo menos hoje, e já nos modernistas assim era. Os poetas querem-nos levar à certa com essa poesia sobre (a sua) poesia. Adília Lopes também faz isso, em dois ou três poemas deste livro. Recomendo ao leitor que queira entrar no jogo da autora o da página 76, "Todos os meus/poemas/são eróticos..." Mas depois terá de reler todo o livro para confirmar a asserção. Público, 22.11.2003, Raquel Ribeiro

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