“Vivo
dia a dia
sou
uma mulher-a-dias”
(Adília Lopes)
Comecemos pela capa de Caderno (2007), reprodução de um antigo caderno de registos de contabilidade. Um registo do deve e haver de uma mulher-a-dias da poesia que dedica o livro a outra mulher-a-dias. Uma mulher-a-dias que arruma “um palácio confuso /como o fundo do mar” (pg. 26), apesar de o fundo do mar estar arrumado.
A obsessão adiliana pela arrumação vem da tentativa de adiar o caos. Já em A mulher-a-dias (2004), Adília Lopes se apresenta como uma mulher-a-dias que “arruma o poema / como arruma a casa” (Lopes, 2004:13). Uma casa, se não for limpa e arranjada, com uma certa regularidade, rapidamente se deteriorará: lixo amontoado; telhados e paredes em mau estado, janelas com vidros partidos que deixam entrar o vento e a chuva, que por seu turno destroem papéis, livros e outros objectos. Para que este deterioramento natural e espontâneo não aconteça “há que despender, duma forma quase contínua, energia, esforço e …«fazenda». Só assim se impede que aumente a desorganização” (Peixoto, 1994:47). Adília procura, de todas as formas, evitar o colapso e evitar a realização da Segunda Lei Termodinâmica. Se a entropia aumenta no decurso do tempo, Adília Lopes procura a todo o custo desviar-se dela:
É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
(Lopes, 2002: 13)
Sabe-se que a entropia aumenta no decurso do tempo e é irreversível: é a seta do tempo. Adília Lopes procura ser um constrangimento, evitando o seu aumento. Se a entropia constitui uma “medida quantitativa da desordem” (cf. Pinto Peixoto), isto implica que quanto menos provável for a distribuição de moléculas ou de átomos num sistema, menor será a entropia. Ora, Adília recebe a “ a entropia de cada dia” (Lopes, 2002: 13) e ocupa-se depois em desorganizá-la. Os seus textos são disto mesmo reflexo: os caminhos percorridos pelas palavras são os menos óbvios, os menos prováveis: “o poema desentropia” (idem, ibidem).
Adília Lopes, na qualidade de mulher-a-dias, vive a um nível entrópico extremamente baixo, cercada de uma miríade de objectos e situações que “metaboliza”, renovando-os continuamente, numa tentativa de adiar a entropia:
Depois de lamber cuidadosamente
as minhas feridas mudei
o lugar as minhas jóias
estavam num cartucho
de papel pardo dentro de uma gavetinha
(Lopes, 2000:26)
O mudar de lugar é uma forma de travar a seta inexorável do tempo.
No panorama da poética actual, Adília Lopes é, talvez, um dos nomes que mais reflecte sobre a construção do texto poético As definições de poesia e as reflexões sobre temas que gravitam em torno dela abundam: o poema “é mais emblema / que lema” (idem: 309) ou “o poema / sai barato /já não se escreve / com pena de pato. “ (idem:396) ou ainda que “o escritor / é as vezes / um estupor” (idem:420) e “o prémio / nem sempre / é génio” (idem, ibidem). E, ainda, o já clássico. “O poema não deve ser / uma mala / mas um mal / entendido (idem: 408).
Em Caderno (2007), a poesia como um edifício que tem de ser construído “perda / sobre / perda // Pedra / sob / pedra.” (idem:17). Transformar a perda em pedra, o degrau em verso: “Degrau a degrau / Verso a verso / O poema/A escada” (idem: 24).
Ao contrário dos últimos livros de Adília , Caderno (2007) apresenta-se despojado de notas, logo mais limpo, a caminhar para um abismo de silêncio. Adília continua a cortar, a livrar-se das flores da retórica e da oratória (inutilia truncat). Se os adjectivos já quase tinham desaparecido, agora são os verbos que são usados com parcimónia. Em Caderno caminhamos para uma poesia de pura nomeação: a rua, as casas, as grades, os portões, as árvores.
Em “A Escada”, crónica de 2002, Adília constata que a escrita e a vida exigem cálculo e premeditação, acrescenta: “a vida, para mim, é contemplação, não é acção, nem quase é gesto. A vida é visão, contemplação do mundo. Estado que não precisa de palavras nem de números. É esse silêncio de quando passa um anjo. O silêncio que é comunhão e presença, o oposto da solidão e do vazio.” Os seus textos caminham para o silêncio: a própria repetição é a destruição da palavra.
Nessa mesma crónica, a propósito de Solidão I, de Irene Lisboa, Adília fala de uma aguarela de Carlos Botelho, que está na capa, e que representa Lisboa, sem pessoas nem, animais: “Lisboa aparece como um jogo de volumes, de paralelepípedos coloridos, um palco abandonado pelos actores mesmo antes de ser atacado por um bando de bailarinos ou por uma praga de andorinhas e de gaivotas”. A rua e a cidade de Caderno são também esvaziadas de gente:
Casa azul-turquesa
Árvores
Como castiçais
Duas janelas
Como dois barcos.
(Lopes, 2007: 8)
Mesmo as pessoas do metro, são meras cartas de jogar, fora de um qualquer baralho. O livro abre com dois poemas sobre a sua rua, textos onde se ouvem os portões a abrir, onde se vêem as grades pintadas de verde do quartel, a casa amarela, a casa azul-turquesa, as árvores:
Quando encostam
ou abrem
o portão
do pátio do Duarte
na minha rua sossegada
à tarde
é como se os músicos
afinassem os instrumentos
antes do concerto.
(idem, ibidem)
Pelas janelas
vejo a luz do Sol
nos choupos
os azulejos azul-turquesa
da casa em frente
e os ferros pintados de verde-escuro
das varandas.
(idem, 2006: 5)
Os vidros e os espelhos que obstaculizavam AL, quase desaparecem neste livro, ou melhor foram quebrados. As barreiras desaparecem e talvez por isso “o céu sobre Lisboa / de tão azul / é branco” (idem, 2007:25) Ficam apenas as portas. As mesmas que em Le Vitrail, la nuit - A Árvore Cortada (2006) se apresentavam como uma dúvida:
Se não fecho
algumas portas
há correntes de ar
a mais
Se fecho
todas as portas
não posso sair mais
algumas portas
não fecho
algumas portas
todas as portas
desintegro-me
Agora, usa a sabedoria proverbial para justificar os limites se impõe. Decide não procurar mais, resigna-se:
Há portas
que é melhor
fechar para sempre.
Há portas
que é melhor
nunca abrir.
(idem, ibidem)
Não conseguimos deixar de ver nestas portas um alçapão para o passado e para as memórias pessoais que povoam de forma dessentimentalizada todos os livros de Adília Lopes, até este. Uma memória de uma família excessivamente protectora, de uma infância abrigada e abafada por agasalhos inúteis que a não defendem da vida: “a vida é luta” (Lopes, 2007:9):
Fui uma menina demasiado protegida
a minha mãe arrancava o cochicho
aos bonecos de chiar
para eu não o engolir
eu apertava os bonecos de chiar
os bonecos de chiar não faziam barulho
deitavam ar e era tudo
aos gatos de peluche arrancava os bigodes
para eu não me picar
as meninas que vinham brincar comigo
cortava as unhas rentes
para não me arranharem
se estava na aldeia
tapava-me os ouvidos com bolas de cera
para eu não poder ouvir os morteiros
da festa de Santa Úrsula
aos livros da Condessa de Segur
arrancou as páginas
em que as crianças são chicoteadas
com vergastas pelas madrastas
e aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
por ela lhe ter feio um arranhão
se me lia contos de fadas
saltava por cima da maçã envenenada da Branca de Neve
e do fuso envenenado da Bela Adormecida
(Lopes, 2000: 113-4)
Adília Lopes é afastada de todas as sensações: não podia ouvir o chiar do peluche, nem os morteiros da festa de Santa Úrsula; não podia sentir os bigodes do gato, nem as unhas das outras meninas; não podia ler as passagens mais violentas e dolorosas dos contos infantis ou das histórias da Condessa de Ségur.
cresci completamente vestida de algodão
porque achava que a lã e as fazendas
me picavam
queria muito ir a praia
mas a minha mãe tinha medo que eu me afogasse
deu-me um búzio
para eu fazer uma ideia
do que era o barulho do mar
e deixou-me chapinhar na banheira
mais tempo do que era costume
também a Veneza não me deixou ir
por dizer que cheirava mal
deu-me uma colecção de estampas
e uma gôndola em miniatura
mas não tão pequena
que se pudesse engolir
(idem, ibidem)
O conhecimento do mundo foi feito de forma indirecta, através de substitutos que miniaturizam a realidade: o búzio substitui a praia, as estampas e a miniatura da gôndola substituem Veneza. A realidade é redimensionada à escala de um bibelô: todo o exterior cabe numa pequena vitrina. Além de se tratar de uma forma oblíqua de aceder ao concreto, é sempre uma forma parcial, amputada (é a parte que não permite conhecer o todo). Agora, é tempo de não abrir essas portas do para o passado, afinal “o passado /´É barro /Como o futuro” (Lopes, 2006:71:).
As criadas, as tias, a mãe, o pai ficam para lá dessas portas. Há uma aprendizagem, uma necessidade de aprender a anestesiar o sofrimento. Só restaram as Botelhos, ou melhor a casa das Botelhos, como uma cicatriz de uma infância distante. As Botelhos, eternas rivais, eram as vizinhas, as colegas que censuram, que desaprovam, que criticam. O olhar das Botelhos sobre Adília Lopes é, ainda, o olhar dos outros sobre ela:
A cerejeira está em flor
À porta das Botelhos
É amarela.
(idem, 2007: 14)
Agora, das Botelhos, só resta a casa.
o tempo
das rupturas
Quero
ser
reparadora
de brechas
(idem, 2006: 24)
Caderno (2007) assinala esse novo momento. O universo feminino, as artes domésticas, o corpo, a sexualidade, a humilhação quase não são convocados. Caderno traz apontamentos, notas, legendas, graffitis. E assim, uma vez mais, Adília torce as expectativas. Ainda assim, quem procura a redenção, o sublime, o apaziguamento, a bela palavra, os bons sentimentos não o procure aqui. Aqui não há remissão: há, apenas, desvios.
Bibliografia:
Lopes, Adília
(2000), Obra, Mariposa Azual, Lisboa.
(2004), A Mulher-a-dias, &etc, Lisboa.
(2006), Le Vitrail le nuit – A árvore cortada, &etc, Lisboa.
(2007), Caderno &etc, Lisboa.
(1994) – Entropia e ainda entropia. Col. Textos Escolares Universitários,Universidade do Algarve, Faro.
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