agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O Mundo Sólido, de João Paulo Sousa

Eclipse de Antonioni, 1962

Assim o passado é absoluto para tudo o que é já passado, se desprendeu já de nós.” (Vergílio Ferreira)


Em Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, Giordano Bruno demonstra que o mundo é infinito quanto ao espaço e quanto ao tempo (que, portanto, nada existe fora dele, e que não teve começo e não terá fim). Não há um centro, ou melhor tudo, é centro. A solidez, a estabilidade, as certezas não existem, dando lugar assim à multiplicidade, à fragmentação, à fragilidade. Esta posição anti-aristotélica pagou-a Giordano Bruno com a vida.

Giordano Bruno desafia O Mundo Sólido. É uma presença irónica, pois conhece, à partida, a impossibilidade desse mesmo mundo uno, denso, consistente. O artigo (bem) definido no título da obra - O Mundo Sólido - determina a tentativa da completude: não se trata de “um” qualquer mundo entre mundos, mas de “o” mundo.
Giordano Bruno, Francisco e seu pai estão ligados não apenas por um acidente temporal - 52 anos – mas pela incomunicabilidade. Pela impossibilidade de comunicar, de dizer de si.
Neste sentido, o romance de João Paulo Sousa não é apenas uma obra do hoje, pelo contrário, reflecte uma problemática comum àqueles que se pensam desde sempre. A isto se chama angústia: “a ansiedade sente-se como a angústia se pensa. Mais do que um fenómeno da sensibilidade diria que a angústia é um fenómeno mental, ainda que a sensibilidade nela, enfim, se reconheça” (Ferreira, 1987: 60)

Os silêncios que encontramos em O Mundo Sólido são angustiados, dolorosos, , asfixiantes. Os exemplos abundam: “ violência silenciosa” (pg.7), “aquele silêncio começara a incomodá-la” (pg. 12), “aquele silêncio, decerto em consequência da intensidade com que eu tinha recebido as palavras da Paola, adquirira espessura e transformara-se em mutismo.” (pg.15), “ouvi-a de novo em silêncio e senti-me tão mal” (pg.18), “silêncio feroz”.(pg. 36), “envolto num silêncio que me separava do mundo” (pg 55), “Os silêncios em que ela se fechava “(pg. 89 ), “O silêncio em que me fechara transformou-se depressa num exílio interior” (pg. 91), “silêncio mútuo” (pg. 94 ). Há uma hiper-consciência do silêncio que se reflecte numa percepção exacerbada dos mecanismos do corpo: as palpitações, as tonturas, a vertigem, o desmaio, a respiração descontrolada, o medo.

Os silêncios de O Mundo Sólido não são apaziguadores: são fruto de uma contenção consciente, de um pudor excessivo, de um medo de intimidade. O respeito pelo espaço do outro é tanto, que Francisco vai morrendo enclausurado dentro de si:

Cada minuto que passava valia mais dentro do tempo que faltava para nos separarmos, e a consciência desse facto constituía-se, para mim, na razão de uma dor crescente, em resultado da dificuldade, que eu sentia como cada vez maior, de romper o silêncio e pedir à Paola que não me deixasse, que nunca me abandonasse.” (pg. 127)

Numa modernidade líquida (cf. Bauman), Francisco, o narrador, procura solidez e encontra solidão acompanhada. Ironia: Francisco é arquitecto: desenha mundos.
O texto de João Paulo Sousa é, na forma, sólido. Não há parágrafos, não há capítulos … eppur si muove. Move-se , sem que Francisco faça muito por isso:
A morte da minha mulher, ocorrida tão pouco tempo depois do reconhecimento clínico da sua doença, libertou-me do cerco em que eu me deixara encerrar e deu-me a possibilidade de respirar de novo a plenos pulmões, como é costume dizer-se, o que, no entanto, demorei algum tempo a conseguir fazer, em virtude da falta de hábito.” (pg.30)

deixei que ela me conduzisse até ao único quarto, me deitasse sobre a cama e me resguardasse com um cobertor” (pg.38)

As circunstâncias empurram-no e ele acomoda-se a elas, sem em nenhum momento desenhar sequer revolta (mesmo na relação com o filho, prefere a hipocrisia à ruptura: “não fui capaz de ir tão longe, não fui capaz de ser totalmente consequente,o que acabou por constituir a minha derrota” (pg. 94)).
O mais importante é a procura de um centro, de uma memória sólida que sirva de âncora à sua existência. Mas a memória traí, faz-se presente quando não deve, sobrepõe-se ao quotidiano, interfere. A memória não é matéria moldável: “e não sabia ainda que a memória é uma arca com muitas fendas, por onde não se cansa de expelir o que julgávamos arrumado em definitivo.” (pg.67). Apesar do desencanto, há a nostalgia de uma realidade sólida, unitária, estável (cf. Vattimo), uma nostalgia que “corre o risco de se transformar continuamente numa atitude neurótica, no esforço de reconstruir o mundo da nossa infância, onde as autoridades familiares eram ao mesmo tempo ameaçadoras e tranquilizadoras.” (Vattimo, 1992:14). Mas o passado também não é sólido.

Diz Bauman, na senda de Luhman que “para o indivíduo contemporâneo, o ego torna-se o lugar e o foco de toda a experiência interior, enquanto o ambiente, dividido em fragmentos com pouca conexão entre si, perde muito dos seus contornos e da sua autoridade definidora de significados” (pg. 105). Porém, nem entregue a si próprio o indivíduo tem a tarefa facilitada: “o eu é sobrecarregado com a tarefa impossível de reconstruir a identidade perdida do mundo; ou mais modestamente, com a tarefa de sustentar a produção da sua identidade” (106). Francisco tem muita dificuldade em encontrar o seu lugar: a cidade ideal não existe; a memória é um fantasma; o filho um “suplemento perturbador” (cf. Zizek); Paola não precisa dele. Tudo em Francisco é deslocamento e desconforto.
Talvez na sequência final de O Eclipse de Antonioni encontremos um eco justo do desolamento, da impossibilidade, da incapacidade, do desespero mudo que se abate sobre o protagonista de O Mundo Sólido.

Paula Cruz, Junho de 2009

BAUMAN, Zygmunt (trad. Mauro Gama) O Mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Bauman, Zygmunt, (trad. Marcos Penchel), Modernidade e ambivalência, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2007.
FERREIRA, Vergílio, Espaço do Invisível IV, Lisboa, Bertrand Editora, 1987.
FERREIRA, Vergílio, Invocação ao meu corpo, Lisboa, Bertrand Editora, 1994.
Vattimo, Gianni, (Trad. Hoissein Shooja), A sociedade transparente, , Lisboa, Relógio d' Água, 1992.
Zizek, Slavoj, As Metástases do Gozo - Seis Ensaios sobre a Mulher e a Causalidade, Lisboa, Relógio d' Água, 2006.

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