agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sábado, 18 de julho de 2009

É a vida, José Gil

COMO CONVÉM TELEVIVER

José Gil, Portugal, Hoje - O Medo de Existir, Relógio D'Água, Lisboa, 2005

"É a vida". Esta frase com que o apresentador da RTP termina amiúde o Jornal da Noite dá o tema do ambiente mental em que vivemos. "Dar o tom" significa muito mais do que "sugerir" ou "indicar" uma direcção de leitura. Na realidade, constitui por si só toda uma "visão do mundo" e, mais importante, toda uma visão de nós mesmos, da nossa vida enquanto [tele]espectadores do mundo.

Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação, mortos palestinianos e israelitas, descobertas de centenas de vítimas taliban asfixiadas em contentores no Afeganistão, surge uma notícia que, como uma luz divina, redime todo o mal espalhado pela Terra: nasceu um bebé panda no Zoo de Pequim! O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com um tom sábio: "É a vida!"

É a vida ,pois. Que mais quereis? É a vidalá fora, não há nada a fazer, é assim, vivei a vossa com paz e serenidade, não há nada a temer, é lá longe que tudo acontece e, no entanto, estou aqui eu para vo-lo mostrar inteiro, o mundo, ide, ide às vossas ocupações que a vida continua.

Com este tom detinado a sossegar os espíritos, o apresentador envia-nos várias mensagens precisas: 1. A vida é uma mistura de bem e mal, o homem está entre a besta e o anjo, e isto constitui a essência do mundo, que foi, é, e será sempre feito dessa mesma massa; 2. A frase impõe uma norma: eis o que se pode, e portanto, deve pensar do que acabámos de ver em todo o planeta. Norma metafísico-moral, ou melhor, norma ligeiramente eivada de metafísica que assim recolhe e reúne num só, todo o tipo de observações, de reflexões, pensamentos que as imagens televisivas suscitariam. É pois, uma norma para o pensamento: diz-nos como e o que pensar do mundo: e segundo a maneira de pensar, pensamo-nos também a nós face ao mundo, mas como se estivéssemos dentro dele, como sua parte integrante. Cria-se aqui uma pequena transcendência, imperceptível mas indelével, que constitui o efeito profundo do imperativo metafísico-moral: o telespectador é colocado dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não o vivendo. "É a vida", a nossa, a de todos, aquela que vivemos - e, no entanto, a vida é um espectáculo de imagens a que vós acabais de assistir. De fora, porque ele está fora de nós.

Estamos fora da vida, dentro dela: "é a vida!..." É esta mistura confusa de transcendência-imanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no espírito.

Um terceiro aspecto não menos importante: 3. A norma neutraliza quaisquer veleidades de um discurso que se desvie deste bom senso que ela irrecusavelmente revela. A norma impõe limites imperceptíveis [porque internos] ao pensamento e, certamente também, à acção. Tudo o que vivemos, a barbárie, o excesso, a crueldade mais insuportável são compensados, reequilibrados pelo sorriso, e o golpe do panda: é o que nos diz o metadiscurso final [a frase] do apresentador. Ou seja, aquilo, o crime e o sangue, não é a vidaainda; só começa a pertencer à sua esfera com o surgimento do bebé panda.

Inocula-se assim, no seio das imagens, uma outra dose de nevoeiro: o que vistes não é o que vistes, mas o que só agora estais a ver, que é o que vistes menos o que julgastes ver porque o bebé panda vo-lo retirou.

Mas não só as imagens perdem significado. Também o discurso é desfalcado das últimas implicações de sentido que encerram. Quando o discurso de Bush representava uma ameaça real de guerra contra o Iraque, nós não nos sentíamos implicados, porque "a vida é assim", as palavras e as intenções bélicas do presidente americano entravam no equilíbrio geral da vida, segundo a sabedoria do bom senso. Não haveria guerra no Iraque como não há propriamente ameaças, hoje, de um conflito futuro no Irão. Uma espécie de caricatura de harmonia preestabelecida regula assim, noite após noite do jornal televisivo, o curso da história, recolocando o fiel da balança no justo meio, que selecciona sem dúvida a parte melhor, a mais justa, aquela que é mais metade que a simples metade.

Não se trata, a bem dizer, do "curso da história": dado o cariz metafísico da norma, as imagens apresentam antes a essência do mundo e não o movimento da história, o qual se esbate num horizonte longínquo, de onde se manifesta apenas um pulsar ténue de signos-índices ["sim, lá estão os atentados palestinianos... a expulsão dos fazendeiros brancos no Zimbabwe..."].

Ao supor a harmonia preestabelecida segundo o bom senso [o mal e o bem equitativamente repartidos no mundo], a norma impõe limites negativos ao pensamento [exclui o excesso, o desiquilíbrio, o anormal], sem que se veja bem como induz ao memso tempo uma certa orientação na maneira de pensar. Ou seja: a norma oferece também conteúdos positivos?

Ela diz o que se deve pensar como essência de todos os acontecimentos do mundo. No desfile caótico das imagens - triplamente caótico: como imagens de caos; quer dizer como caos de imagens vindas das regiões mais heteróclitas do sentido; como imagens que se aparelham linearmente como se se anulasse assim o caos narrativo, uniformizando-lhe o sentido, roubando-lhes a singularidade, criando um outro caos, o do afundamento do significado das imagens - a frase final do apresentador introduz ordem, segurança, uma realidade pensável. No entanto, o que se deve pensar aparece revestido numa categoria tão geral e totalizante, que nenhum dos enunciados possíveis extraídos das imagens se poderia desenvolver autonomamente, seguindo a sua linha própria. "É a vida" engloba-o, e apaga a relevância eventual deste ou daquele enunciado ou imagem concreta. Por isso, ao querer significar tudo, não significa nada. É uma frase vazia, despida de conteúdo. Mais gorda e pretensiosa, que se quer mostrar pletórica de sentido. Pura injunção formal, nada diz, senão limites e regras para não pensar.

Tanto mais que a sua função designativa esconde subtilmente a carga performativa que traz consigo. "É a vida" não está apenas a indicar o que se acaba de ver no cortejo de imagens, mas vem no fim de cada ritual como um gesto terminal que fecha a sessão enquanto a designa, escapando-lhe assim. É que "É a vida" pertence à Vida como as outras imagens, os outros gestos, os outros comentários dos repórteres em directo, como os discursos e as imagens dos observadores convidados - a série de palavras, gestos, deslocamentos no palco da TV de pessoas que entram e saem, participando ou não no Telejornal -, e tudo isto faz parte da vida e com ela se mistura.

Enunciado ambíguo pois, por um lado, ao fechar o ritual, o apresentador exclui-se da vida [as imagens desapareceram, só ele resta no palco], e por outro, inclui-se nela, mais fortemente mesmo do que se exclui. Só naquele instante, naquele tempo mínimo em que se exibe sozinho proferindo a frase, a Vida se reequilibra e ganha o sentido do bom senso, a consistência e a existência reais que lhe são dadas pela conivência imposta ao telespectador. Ele dirige-se directamente a nós implicando-nos nessa Vida de que ele é um elemento, e o exemplo mais irrecusável, com o seu sorriso competente e sedutor, as palavras que nos entram pela cabeça dentro para nos fazer suportar o mundo... Ele, o apresentador, agora despojado de imagens, penetra subitamente no mundo real que é o nosso, nas nossas casas diante da televisão, e conecta-o com subtileza com o mundo das imagens, para dar forma a uma nova identidade: "a Vida", em que estamos todos.

A este nível também [nível do ritual da comunicação das notícias] contrói-se um nevoeiro que nos envolve e não nos deixa distinguir com clareza o real do "irreal" [chamemos assim, provisoriamente, ao que nos fica do estatuto de realidade as imagens do telejornal, depois do tratamento a que foram submetidas e que acabámos de descrever]. E, mais uma vez, o nevoeiro é invisível, pois tudo parece nítido, claro, com contornos bem definidos. No entanto, como vimos, basta perguntar pela função daquela frase do apresentador para verificarmos que ela segrega múltiplas camadas de confusão que não se vêem, mas que lhe condicionam radicalmente o sentido. Como um inconsciente que se alojasse no seio das representações mais conscientes. Como uma sombra branca.

Uma consequência maior da criação do nevoeiro [ou do "irreal" imperceptível] é o afastamento do real apresentado - mesmo em directo - do presente do telespectador: que será contaminado de seguida por esse regime de irrealidade.

Onde se situa o Iraque, Israel, a China da televisão? Quando eles são notícia, vai imediatamente para lá um repórter que nos fala em directo. Estão pois ao nosso lado, aqui mesmo, em tempo real. Uma tal proximidade é puramente factual: é uma componente da imagem, não do valor, da sua importância ou do seu alcançe para a existência do telespectador. Essas, por mais "directos" que venham da China ou do Zimbabwe, situam-se do lado de cá da imagem, da vizinhança real dos corpos portugueses. Mais: se é verdade que o sentido final das imagens depende de todo aquele dispositivo discursivo e ritualístico que culmina na frase última do apresentador, então é logo no princípio que elas entram num circuito próprio de espaço e tempo que elimina completamente o presente real e o directo. Ou melhor, o directo não se opõe ao "irreal" que provém da distância e do passado, pelo contrário, ele fornece, por contraste, o álibi necessário para que as imagens sejam percepcionadas como pertencentes ao mundo da "vida".

E qual o tempo e o espaço desse mundo, e dessas imagens? São imagens de um perto que está longe, e de um próximo afastado no tempo. O directo oferece-nos o perto-longe da realidade das imagens: aquele Zimbabwe das imagens instantâneas, imediatas, situa-se em África... mas o presente directo daqueles africanos a correr não coexiste, não coincide com o meu presente aqui, sentado diante da televisão. Porquê? Porque nada da minha vida se liga ao Zimbabwe.

No fundo, os africanos [ou os brancos fazendeiros] que se arranjem.

A lonjura que impregna a percepção próxima e, por natureza, conservadora, paralizante, "territorializante". Cria barreiras, limita o espaço ao local, ao regional, afasta os homens que se situam além-fronteiras para uma esfera indefinida de sub-humanidade inconsistente. Os chineses? Mas quem são, afinal? São como nós, sim, mas... enfim, vi-os na televisão... Tien-An-Amen... Pois.

Se a percepção dos Chineses não fosse enevoada e longínqua, mas próxima, ao ponto de mexer com a minha vida, então esta deixaria de ser, também, para mim, estática e um pouco ausente como ela é.

Mas eu próprio pouco sei dessa ausência. Não me reconheço nela. Porque o perto-longe das imagens da China ou da Palestina entram na mesma atmosfera nevoenta do meu presente. Paradoxo: por um lado, a televisão fabrica-me representações de um mundo longínquo; por outro, esse é o mundo adequado ao meu mundo. É o que me convém: se as imagens do mundo não me dizem respeito, ou me dizem só longinquamente respeito, então está tudo bem assim, porque a minha imagem também só enevoada me diz respeito. Eu nem me apercebo do "longe", do "afastamento", da "ausência de mim a mim". Não há paradoxo, porque não há consciência dele. Não há sobressalto de pensamento. Tudo se mistura, talvez. Mas não "é a vida"?

Lembremo-nos que esta expressão vem de longe, e de uma outra zona discursiva: costumava terminar os comentários e análises de António Guterres, o primeiro-ministro socialista. Com uma leve carga de resignação, ela pretendia exprimir uma velha sabedoria cristã: aceitemos os males do mundo, os dissabores, tudo o que vai contra a nossa vontade, porque isso resulta de uma lógica e de um poder que nos ultrapassam. E já que a lógica do tempo histórico é imbatível, aproveitemos então para, na nossa pequena esfera, tirarmos pequenos benefícios individuais. O sentimento de responsabilidade por uma comunidade, por um país, parece ter desaparecido.

Em política, esse tipo de transferência de regras morais de conduta para a esfera governativa pode ser extremamente perigoso. A resignação leva à impotência, a passividade à inércia e ao imobilismo: o governo de Guterres caiu porque não governou, ponto final. O de Durão Barroso não terminou, por razões de conveniência pessoal do primeiro-ministro. O governo de Santana Lopes vive só de pequenos [ou grandes] gozos que a governação propicia.

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