agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sábado, 4 de julho de 2009

A urgência da obra completa

Duane Hanson
A urgência da obra completa



A construção de uma obra passa por uma estádio de sedimentação, de acumulação, de depuração e de transformação e este processo implica um tempo mais ou menos dilatado. Reunir a obra completa de um autor implica uma totalização e uma unificação, o que na maior parte das vezes lhe retira legibilidade, transformando-a num mero objecto estético, massificado e precipitado.

O trabalho de compilação e de concatenação de uma obra esteve, durante muito tempo, intimamente ligado a processos de legitimação póstumos, pois o labor de qualquer autor, enquanto ainda está vivo, faz-nos crer que a sua obra está ainda incompleta, aliás, José Ricardo Nunes na nota prévia a 9 poetas para o século XXI (Nunes, 2002) fala em “páginas em construção” (idem, ibidem:7) a propósito da construção de um cânone autoral. Contudo a realidade que observamos contraria isto mesmo: vivemos num tempo de obras completas, de poesia reunida. Um tempo acelerado (cf. Virilio) que corrompe o labore limae que faz parte integrante da edificação de um corpus sólido e digno. Até há poucos anos, só os autores com carreira longa e sedimentada (ou então depositados no frio mármore) tinham direito à consagração através da publicação da obra completa em sólidos volumes. No entanto, nos últimos tempos as obras poéticas reunidas vêm-se acumulando de uma forma excessiva e abundante, reproduzindo, no campo poético, uma sociedade de consumo massiva e massificada, que, concomitantemente procura dar visibilidade a livros desaparecidos do mercado que, pela sua tiragem reduzida, apenas se encontram a custo em alguns alfarrabistas.

A obra reunida «deprecia toda a experiência artística» (Adorno, 2003: 79), um vez que «o bem cultural apresenta-se como um produto acabado», é de certa forma «o selo da alienação radical entre o consumidor e o produto» (idem, ibidem:79). O «aparelho», usando a terminologia adorniana, encaminha o consumidor (note-se que propositadamente não digo o leitor) para a aquisição da obra como forma de o tornar mais apetrechado e informado, impede-se assim que cada «indivíduo isolado passe pela vergonha de parecer tão estúpido como todos os outros. A cultura de massas é uma sinalética de auto-referência. Os milhões de indivíduos das classes baixas, antes excluídos dos bens culturais e agora para eles aliciado, proporcionam o pretexto oportuno para esta viragem no sentido da informação» (idem, ibidem:79).

Neste momento a obra completa (ou tão completa quanto possível) tornou-se num produto cultural, digno de constar na estante, mas que perdeu a legibilidade. Se até há bem pouco tempo a publicação da obra poética reunida, em especial por algumas editoras (e aqui o nome do editor Hermínio Monteiro é incontornável), se inscrevia numa lógica de distinção, hoje em dia isso pouco ou nada significa: passou a ser apenas mais um factor de visibilidade e de mercantilização. Gemán Gullón distingue mesmo entre compradores e consumidores, sendo que estes últimos «se deixam levar pelas vantagens do uso estabelecido» (Gullón, 2004:26). A verdade é que em termos puramente economicistas é mais vantajoso para o consumidor investir na obra reunida, do que acumular todas as publicações poéticas de um autor.

A publicação destas obras completas funciona como uma forma de satisfazer quer as necessidades do hiperconsumidor de que nos fala Lipovetsky - aquele que deseja satisfazer as necessidades culturais rapidamente - e, por outro lado, se antes «os artistas e os homens de letras ambicionavam criar obras imortais; agora o que importa é ser-se «conhecido», aparecer nos media, vender um elevado número de produtos com esperança de vida limitada» (Lipovetsky, 2007:304). Queremos acreditar que a pressão para a edição destes volumes parte mais do mercado, do que da vaidade do poeta.

Depois de durante quase uma década termos vivido imersos em antologias poéticas promocionais, estamos agora em período de obras completas, incompletas e/ou inacabadas. Para falar com mais propriedade destas compilações, abro aqui um amplo parêntese em relação às antologias, uma vez que há agora um deslocamento de alguns autores aí promovidos para obras onde se reúne, agora, num único volume, a toda a sua obra poética produzida. Com estas obras “completas” não está em causa a validação artística do autor (ou a sua qualidade), mas o mecanismo que pretende promover a venda de livros, enquanto objectos que se têm, mas que não se lêem. Trata-se de uma óbvia contaminação da esfera cultural, social e económica. A publicação da obra, nestes casos, esvazia o próprio conceito de obra. Quando falo de antologias promocionais, refiro-me, apenas, às três mais representativas: Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1997) organizada por Pedro Mexia; Anos 90 e Agora (2001) organizada por Jorge Reis-Sá e Poetas sem qualidades (2002) da responsabilidade de Manuel de Freitas. A antologia coordenada por Pedro Mexia, que comemora agora uma década, recolhe catorze poetas: Adelino Sousa, Fernando Luís, Fernando Pinto Amaral, João Luís Barreto Guimarães, Joaquim Cardoso Dias, Jorge Sousa Braga, José Carlos Barros, José Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Filipe Parrado, Luís Quintais, Nuno Artur Silva, Paulo Jorge Fidalgo e Teresa Leonor Vale . A antologia organizada por Jorge Reis-Sá, mais ampla, recolhe textos de Ana Luísa Amaral, Ana Marques Gastão, Ana Paula Inácio, Carlos Saraiva Pinto, Daniel Faria, Fernando Pinto Amaral, Jorge Gomes Miranda, Jorge Melícias, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Manuel Gusmão, Maria Rosário Pedreira, Paulo Jorge Miranda, Pedro Mexia, Rui Cóias, Rui Pires Cabral, valter hugo mãe, Vasco Ferreira Campos e Vasco Gato. Finalmente, Poetas sem Qualidades (2002) reúne Carlos Alberto Machado, Ana Paula Inácio, Carlos Luís Bessa, Rui Pires Cabral, João Miguel Queirós, Nuno Moura, Vindeirinho e um autor anónimo.

Passados dez ou menos anos sobre algumas destas antologias, encontramos nos poetas aí recolhidos alguns que (já) têm uma obra poética reunida em um só volume: Fernando Pinto Amaral, Jorge Sousa Braga, Ana Luísa Amaral, Daniel Faria (esta obra de facto completa, em virtude da morte prematura do autor) e José Tolentino Mendonça. Mais curioso é ainda comparar os Anuários de Poesia de 1984 e 1985, da Assírio & Alvim onde se antologiam autores não publicados e constatar que alguns deles já têm obra reunida, nomeadamente, Adília Lopes e Daniel Maia-Pinto Rodrigues.

Pegando, por exemplo, no caso de Fernando Pinto Amaral, reparamos que três livros de poesia - Acédia (1990), A Escada de Jacob (1993) e Às Cegas (1997) - autorizaram já a publicação dos três em um em Poesia Reunida 1990-2000 (2000) pela editora D. Quixote. Ou, no caso de Jorge Sousa Braga, A Ferida Aberta (Braga , 2006) publicada no final do ano passado, já está incluída no volume de poesia completa O poeta Nu (Braga, 2007) da Assírio & Alvim.
Se acrescentarmos aos nomes já referidos, os poetas recolhidos na antologia Desfocados Pelo Vento (2004), constatamos que de entre os dezoito nomes aí antologiados, nove têm já a sua obra publicada em compactos volumes: Adília Lopes, Amadeu Baptista, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Francisco José Viegas, Inês Lourenço, Isabel de Sá, Jorge de Sousa Braga, Luís Filipe Castro Mendes, Rosa Alice Branco.
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, por exemplo, que em Dióspiro (Rodrigues, 2007) reúne a sua obra completa, havia ainda recentemente, em Malva 62 (Rodrigues, 2005), coligido, recolhido, montado e depurado alguns poemas seus. Não é uma estratégia nova, o direito à auto-referencialidade é total e à reescrita também – outros o fizeram e continuam a fazê-lo bem - parece-me, contudo, que a voracidade da publicação retira valor ao verso e traz, ou pode trazer, decepção ao leitor.
Nas obras ditas completas não está em causa apenas o sucesso nas vendas ( na poesia um sucesso sempre muito relativo), mas o reconhecimento pelos pares e a visibilidade. Aliás, muitas vezes, o sucesso económico imediato (coisa rara), especialmente num campo elitista como é o campo poético, faz com que o autor seja imediatamente repudiado pelos seus pares: «ora estamos com efeito num mundo económico de pernas para o ar: o artista só pode triunfar no terreno simbólico perdendo no terreno económico (pelo menos a curto prazo), e inversamente (pelo menos a longo prazo).» (Bourdieu, 1996:105). Aqueles que encontram com facilidade bom acolhimento entre o público são, regra geral, repudiados pela massa crítica.
O que se passa é que os jovens poetas contemporâneos (e na literatura o conceito de juventude é amplamente alargado) adquiriram na última década um valor de mercado que tem sido explorado até à exaustão quer pelas antologias, quer pelas obras reunidas. Esta estratégia de publicação promove uma canibalização dos títulos e reduz o ciclo de vida de cada livro, não deixando que os textos amadureçam.

Os livros de poesia são processos cumulativos que implicam a construção de um labor intelectual: nos e com os (pequenos) livros de poesia cresce uma cumplicidade que se vai estreitando entre o poeta, o livro e o leitor. O leitor de poesia procura acompanhar livro a livro a obra dos seus poetas, crescendo com os livros e com as leituras que deles faz. Cria-se uma relação de cumplicidade: cada livro de poesia é uma jóia rara até devido à sua tiragem limitada. Quando a obra é publicada num todo, quebra-se esta magia, sendo este processo quase geológico arruinado, já que se perde o prazer do processo de construção, sedimentação e de crescimento. Face ao panorama actual, a publicação da obra toda nem legitima o autor, nem prestigia a editora, nem restaura laços de confiança entre leitores iniciados. A publicação em grossos volumes não favorece o prazer da leitura , pode, eventualmente, favorecer outro tipo de usos (nomeadamente o da burguesa ostentação). Manguel, sem grande novidade, refere que «os livros revelam-se através dos seus títulos, dos seus autores, do lugar que ocupam numa estante, das ilustrações da capa, os livros também se revelam pelo tamanho.» (Manguel,1998: 135)

Argumentos como a democratização da cultura e a dessacralização do género lírico não são razões válidas para a publicação deste tipo de obra poética reunida, porque se a intenção é aumentar o número de leitores isso não acontece. Estes são livros de estante (cf. Santos) que favorecem processos cumulativos, mas que ignoraram o compromisso, a regularidade, o gosto de quem lê poesia. A experiência estética do livro de poesia passa pela fruição sensitiva e racionalizante que uma obra totalitária quebra. A obra toda não funciona pois, além dos aspectos práticos, perdem-se os fios que fazem que cada «pequeno» seja livro seja um corpo harmónico e organizado.

As obras completas promovem uma política de consumo cultural que abrangem uma franja de público ávida de mostrar que têm. Com o acumular de obras completas que ainda o não são, estamos em presença da poluição dromosférica de que nos fala Virilio, uma poluição «que atinge a vivacidade do sujeito e a mobilidade do objecto, a ponto de o tornar inútil» (Virilio, 2000 :60).
A publicação de obras completas pode ser justificada com a necessidade de recuperar títulos esgotados, edições de autor, mas ainda assim creio que seria mais interessante para o editor (e mesmo para o leitor) criar o hábito da reedição dos livros de poesia, do que criar obras completas que o não são de facto, ou por não serem (ainda) completas ou por não serem obras na verdadeira acepção da palavra.

Paula Cruz, 2007


Notas

[1] A propósito destas três antologias, escreve Jorge Reis-Sá, autor de uma delas, no Suplemento «Mil Folhas», do jornal Público, 26 de Julho de 2003:

«A mais festejada [das antologias] tem como figuras tutelares Pedro Mexia e Manuel de Freitas. Este, organizador da "tendenciosíssima" (não, não é uma crítica depreciativa) antologia "Poetas Sem Qualidades", tendo editado em três anos oito (!) livros, parece querer ser porta-estandarte de toda a poesia quando em verdade a sua geração se vê em oposição a novos grupos perfeitamente definidos: outros escrevem outras coisas, tão ou mais interessantes. Manuel de Freiras é o arauto da "pobreza franciscana", introduzida por Luís Adriano Carlos no último número da revista "Apeadeiro", devedora em tudo da "rima pobre" de Joaquim Manuel Magalhães e, nas palavras do seu outro mais importante cultivador, Pedro Mexia, saindo "directamente dos anos 70". Outros poetas surgem neste grupo, homogeneizado pelas razões que tentarei explanar mais à frente: Carlos Luís Bessa, Jorge Gomes Miranda, José Miguel Silva, Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral. Um franciscanismo despojado de metáforas, pobre, que em vez de escrever a poesia como uma arte sublime a retém nos urinóis, nos "shoppings" e nos telemóveis, aproximando-a, a espaços, de referências eruditas como Bach e os clássicos literários, como que estabelecendo a erudição que um "shopping" não fornece. Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral destacam-se deste grupo por conseguirem ultrapassar exactamente o simplismo em que resultam as poéticas dos outros autores.» Sem querer fazer juízos de valor, note-se que Jorge Reis-Sá é responsável pelas edições Quasi, que publicaram a poeta Ana Paula Inácio e o poeta Rui Pires Cabral. Aparentemente o elogio a estes autores advém da sua qualidade de editor e não tanto de crítico.

[1] Só alguns exemplos: O Que Foi Passado a Limpo de Armando Silva Carvalho, 592 páginas; Poesia Reunida - 1990-2000 de Fernando Pinto Amaral , 496 páginas; Dióspiro, de Daniel Maia-Pinto Rodrigues, 416 páginas; Poesia Reunida, 1990-2005 de Ana Luísa Amaral, 475 páginas; Repetir o Poema: 1979-1999 de Isabel de Sá, 396 páginas; Soletrar o Dia: Obra Poética de Rosa Alice Branco, 253 páginas e Metade da Vida de Francisco José Viegas, 219 páginas.


Bibliografia:
Adorno, W. Theodor

(2003) Sobre a Indústria da Cultura (org. António Sousa Ribeiro), Angelus Novus, Coimbra.

Bourdieu, Pierre

(1996) As regras da Arte, (trad. Miguel Serras Pereira), Editorial Presença, Lisboa
(2001 ) O Poder Simbólico, (trad. Fernando tomaz),, Difel, Lisboa, 4ª ed.

Furtado, Afonso José, (2000), Os livros e as leituras, novas ecologias da informação, Livros e Leituras, Lisboa.

Freitas, Manuel de (org.) (2002), Poetas sem Qualidades, Averno, Lisboa.

Gullón, Germán, (2004) Los mercaderes en el templo de la literatura, Caballo de Troya, Madrid.

Huyssen, Andreas (1986) After the Great Divide, modernism, mass culture and Postmodernism, Macmillian, Londres.

Lipovetsky, Gilles (2007) A felicidade Paradoxal, Ensaio sobre a Sociedade do hiperconsumo, (trad. Patrícia Xavier), Ed. 70, Lisboa.

mãe valter hugo (sel. e org.), (2004) Desfocados pelo vento, antologia, edições quasi, V.N. Famalicão.

Manguel, Alberto (1999), Uma Historia da leitura (trad. Ana Saldanha), Editorial Presença, Lisboa, 2ªed.

Martins, Jorge M., (1999) Marketing do Livro, materiais para uma sociologia do editor português, Celta, Oeiras.

Mexia, Pedro (coord.), (1997), Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Contador de Histórias e C- M. de Tomar.

Sá, Jorge Reis (2001) Anos 90 e agora, Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa
edições quasi, V. N. Famalicão

Santos, Maria de Lurdes Lima dos (1992) «O Público-leitor e a apropriação do texto escrito» in a Percepção estética e públicos de escultura, Acarte, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Virilio, Paul (2000), A velocidade de libertação, (trad. Edmundo Cordeiro), Relógio d´Água, Lisboa.

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