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o desejo ficou órfão
no vão das escadas.
o eco do ardor ouve-se ainda
tudo é contrário
à natureza.
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quero morrer agora
sem nenhuma nuvem
que me amarre
quero ser o gato
que não cai de
pé.
adeus. vou para a lua.
AL
agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes
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o desejo ficou órfão
no vão das escadas.
o eco do ardor ouve-se ainda
tudo é contrário
à natureza.
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quero morrer agora
sem nenhuma nuvem
que me amarre
quero ser o gato
que não cai de
pé.
adeus. vou para a lua.
AL
Como se explica que, numa turma de um curso de comunicação de uma universidade, nenhum dos trinta estudantes que a compõem saiba quem foi Bertold Brecht?
Como se entenderá que estes estudantes tenham atravessado os vários níveis de ensino - do pré-primário ao universitário – sem terem aprendido quem foi este autor e o que ele significa?! Brecht é um ponto de uma constelação que inclui um determinado teatro, uma determinada literatura, uma determinada teoria da comunicação (da rádio, em particular); faz parte de uma família de escritores que funda uma literatura deste século, que representa uma época histórica, um período fundamental da investigação científica na física, na astronomia, na medicina, uma perspectiva política, uma ideologia, etc. Estes estudantes passaram cerca de quinze anos em estabelecimentos de ensino e ficaram à margem de uma parte crucial da cultura artística deste século. Como foi possível?
Incompreensível, a não ser pelo anacronismo do ensino universitário que formou os professores e técnicos que se ocuparam destes estudantes durante quinze anos, e que só se justifica porque as universidades (mas também os politécnicos) estão contra a cultura, seja a cultura humanística e artística clássica (Ah! Moliére, esse grande pintor do séc. XIX – afirmaria outro), seja contra a cultura moderna e contemporânea. (pg. 19 e 20)
RIBEIRO, António Pinto (2000), Ser Feliz é Imoral?, Ensaios sobre Cultura, Cidades e Distribuição, Lisboa, Livros. Cotovia.
És cruel
A capa de Aqui na Terra
Seis meninos Jesus souvenirs desencontrados, desfuncionalizados, disfuncionais de braços muito abertos, mas incapazes do abraço, de olhares mortos, inexpressivo. Meninos de barro sem serventia. Meninos que queremos esconder, porque são feios e só os aceitamos quando bem embrulhados numa teoria bem pós-moderna ou, se preferirmos, se a inserirmos num contexto camp (cf. Sontag).
Susan Sontag define o camp como “uma visão do mundo em termos de estilo – mas uma espécie particular de estilo. É o amor pelo excessivo, pelo “off”, pelas coisas-que-são-como-não-são.” (Sontag, 2004:320). E estes meninos, que são feios, muitos feios, não deixam de nos trazer alguma nostalgia, de despertar uma certa afectividade, de provocar o riso: "A essência do Camp é destronar o sério. O camp é divertido, anti-sério. Mais precisamente, o camp envolve uma nova relação, mais complexa com o “sério”. Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do sério.'' (idem, ibidem:332)
Com graça, Sontag conclui que “A descoberta do bom gosto do mau gosto pode ser muito libertadora. Quem insiste nos prazeres elevados e sérios está privar-se do prazer; está continuamente a restringir as fontes de prazer ao exercer continuamente o seu bom gosto acabará por lhe atribuir um valor que o coloca fora do mercado, por assim dizer." (idem, ibidem:336-7).
Não sei se o Miguel Carvalho está a par das teorias sobre o camp, mas acho que as interiorizou muito bem:
“Em palco, Nel é um leão.
E entre avés marias e vivas à emigração, pede aos jovens para não se viciarem no mal e ao povo para exigir dos governantes medidas para quem precisa.
«Obrigado, camaradas», diz, no final de mais uma canção, vivida em êxtase.
O concerto acaba com peças de roupa no ar, a população em delírio.
Nel ainda cantava mais uma se o deixassem. Mas já chega.
Despede-se. «Não ofendi ninguém. Só vim falar das injustiças que fazem à classe operária». Pimba!” (pg. 104)
Voltemos à capa. Diz Torga, não sobre estes meninos, mas sobre os não menos típicos galos de Barcelos, que “a prova [da falta de habilidade] estava no próprio silêncio dos galos de barro, que na fisiologia moldada e nas asas tingidas não anunciavam qualquer amanhecer. O sangue das veias e da crista era postiço” (Torga, 1990:18). Torga falava na decepção com os galos que ele queria com vida, com outra vida e saiam-lhe toscos e inautênticos.
É o que a capa anuncia: o postiço que de tão postiço acaba por ser autêntico. Paradoxal? Incongruente? Pois claro. Não há coerências possíveis ou desejáveis, numa terra onde se encontra o riso misturado com a tragédia, a dor a embalar a vida, a fé nos milagres que hão-de chegar, a manhosice:
José Gil, Portugal, Hoje - O Medo de Existir, Relógio D'Água, Lisboa, 2005
"É a vida". Esta frase com que o apresentador da RTP termina amiúde o Jornal da Noite dá o tema do ambiente mental em que vivemos. "Dar o tom" significa muito mais do que "sugerir" ou "indicar" uma direcção de leitura. Na realidade, constitui por si só toda uma "visão do mundo" e, mais importante, toda uma visão de nós mesmos, da nossa vida enquanto [tele]espectadores do mundo.
Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação, mortos palestinianos e israelitas, descobertas de centenas de vítimas taliban asfixiadas em contentores no Afeganistão, surge uma notícia que, como uma luz divina, redime todo o mal espalhado pela Terra: nasceu um bebé panda no Zoo de Pequim! O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com um tom sábio: "É a vida!"
É a vida ,pois. Que mais quereis? É a vidalá fora, não há nada a fazer, é assim, vivei a vossa com paz e serenidade, não há nada a temer, é lá longe que tudo acontece e, no entanto, estou aqui eu para vo-lo mostrar inteiro, o mundo, ide, ide às vossas ocupações que a vida continua.
Com este tom detinado a sossegar os espíritos, o apresentador envia-nos várias mensagens precisas: 1. A vida é uma mistura de bem e mal, o homem está entre a besta e o anjo, e isto constitui a essência do mundo, que foi, é, e será sempre feito dessa mesma massa; 2. A frase impõe uma norma: eis o que se pode, e portanto, deve pensar do que acabámos de ver em todo o planeta. Norma metafísico-moral, ou melhor, norma ligeiramente eivada de metafísica que assim recolhe e reúne num só, todo o tipo de observações, de reflexões, pensamentos que as imagens televisivas suscitariam. É pois, uma norma para o pensamento: diz-nos como e o que pensar do mundo: e segundo a maneira de pensar, pensamo-nos também a nós face ao mundo, mas como se estivéssemos dentro dele, como sua parte integrante. Cria-se aqui uma pequena transcendência, imperceptível mas indelével, que constitui o efeito profundo do imperativo metafísico-moral: o telespectador é colocado dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não o vivendo. "É a vida", a nossa, a de todos, aquela que vivemos - e, no entanto, a vida é um espectáculo de imagens a que vós acabais de assistir. De fora, porque ele está fora de nós.
Estamos fora da vida, dentro dela: "é a vida!..." É esta mistura confusa de transcendência-imanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no espírito.
Um terceiro aspecto não menos importante: 3. A norma neutraliza quaisquer veleidades de um discurso que se desvie deste bom senso que ela irrecusavelmente revela. A norma impõe limites imperceptíveis [porque internos] ao pensamento e, certamente também, à acção. Tudo o que vivemos, a barbárie, o excesso, a crueldade mais insuportável são compensados, reequilibrados pelo sorriso, e o golpe do panda: é o que nos diz o metadiscurso final [a frase] do apresentador. Ou seja, aquilo, o crime e o sangue, não é a vidaainda; só começa a pertencer à sua esfera com o surgimento do bebé panda.
Inocula-se assim, no seio das imagens, uma outra dose de nevoeiro: o que vistes não é o que vistes, mas o que só agora estais a ver, que é o que vistes menos o que julgastes ver porque o bebé panda vo-lo retirou.
Mas não só as imagens perdem significado. Também o discurso é desfalcado das últimas implicações de sentido que encerram. Quando o discurso de Bush representava uma ameaça real de guerra contra o Iraque, nós não nos sentíamos implicados, porque "a vida é assim", as palavras e as intenções bélicas do presidente americano entravam no equilíbrio geral da vida, segundo a sabedoria do bom senso. Não haveria guerra no Iraque como não há propriamente ameaças, hoje, de um conflito futuro no Irão. Uma espécie de caricatura de harmonia preestabelecida regula assim, noite após noite do jornal televisivo, o curso da história, recolocando o fiel da balança no justo meio, que selecciona sem dúvida a parte melhor, a mais justa, aquela que é mais metade que a simples metade.
Não se trata, a bem dizer, do "curso da história": dado o cariz metafísico da norma, as imagens apresentam antes a essência do mundo e não o movimento da história, o qual se esbate num horizonte longínquo, de onde se manifesta apenas um pulsar ténue de signos-índices ["sim, lá estão os atentados palestinianos... a expulsão dos fazendeiros brancos no Zimbabwe..."].
Ao supor a harmonia preestabelecida segundo o bom senso [o mal e o bem equitativamente repartidos no mundo], a norma impõe limites negativos ao pensamento [exclui o excesso, o desiquilíbrio, o anormal], sem que se veja bem como induz ao memso tempo uma certa orientação na maneira de pensar. Ou seja: a norma oferece também conteúdos positivos?
Ela diz o que se deve pensar como essência de todos os acontecimentos do mundo. No desfile caótico das imagens - triplamente caótico: como imagens de caos; quer dizer como caos de imagens vindas das regiões mais heteróclitas do sentido; como imagens que se aparelham linearmente como se se anulasse assim o caos narrativo, uniformizando-lhe o sentido, roubando-lhes a singularidade, criando um outro caos, o do afundamento do significado das imagens - a frase final do apresentador introduz ordem, segurança, uma realidade pensável. No entanto, o que se deve pensar aparece revestido numa categoria tão geral e totalizante, que nenhum dos enunciados possíveis extraídos das imagens se poderia desenvolver autonomamente, seguindo a sua linha própria. "É a vida" engloba-o, e apaga a relevância eventual deste ou daquele enunciado ou imagem concreta. Por isso, ao querer significar tudo, não significa nada. É uma frase vazia, despida de conteúdo. Mais gorda e pretensiosa, que se quer mostrar pletórica de sentido. Pura injunção formal, nada diz, senão limites e regras para não pensar.
Tanto mais que a sua função designativa esconde subtilmente a carga performativa que traz consigo. "É a vida" não está apenas a indicar o que se acaba de ver no cortejo de imagens, mas vem no fim de cada ritual como um gesto terminal que fecha a sessão enquanto a designa, escapando-lhe assim. É que "É a vida" pertence à Vida como as outras imagens, os outros gestos, os outros comentários dos repórteres em directo, como os discursos e as imagens dos observadores convidados - a série de palavras, gestos, deslocamentos no palco da TV de pessoas que entram e saem, participando ou não no Telejornal -, e tudo isto faz parte da vida e com ela se mistura.
Enunciado ambíguo pois, por um lado, ao fechar o ritual, o apresentador exclui-se da vida [as imagens desapareceram, só ele resta no palco], e por outro, inclui-se nela, mais fortemente mesmo do que se exclui. Só naquele instante, naquele tempo mínimo em que se exibe sozinho proferindo a frase, a Vida se reequilibra e ganha o sentido do bom senso, a consistência e a existência reais que lhe são dadas pela conivência imposta ao telespectador. Ele dirige-se directamente a nós implicando-nos nessa Vida de que ele é um elemento, e o exemplo mais irrecusável, com o seu sorriso competente e sedutor, as palavras que nos entram pela cabeça dentro para nos fazer suportar o mundo... Ele, o apresentador, agora despojado de imagens, penetra subitamente no mundo real que é o nosso, nas nossas casas diante da televisão, e conecta-o com subtileza com o mundo das imagens, para dar forma a uma nova identidade: "a Vida", em que estamos todos.
A este nível também [nível do ritual da comunicação das notícias] contrói-se um nevoeiro que nos envolve e não nos deixa distinguir com clareza o real do "irreal" [chamemos assim, provisoriamente, ao que nos fica do estatuto de realidade as imagens do telejornal, depois do tratamento a que foram submetidas e que acabámos de descrever]. E, mais uma vez, o nevoeiro é invisível, pois tudo parece nítido, claro, com contornos bem definidos. No entanto, como vimos, basta perguntar pela função daquela frase do apresentador para verificarmos que ela segrega múltiplas camadas de confusão que não se vêem, mas que lhe condicionam radicalmente o sentido. Como um inconsciente que se alojasse no seio das representações mais conscientes. Como uma sombra branca.
Uma consequência maior da criação do nevoeiro [ou do "irreal" imperceptível] é o afastamento do real apresentado - mesmo em directo - do presente do telespectador: que será contaminado de seguida por esse regime de irrealidade.
Onde se situa o Iraque, Israel, a China da televisão? Quando eles são notícia, vai imediatamente para lá um repórter que nos fala em directo. Estão pois ao nosso lado, aqui mesmo, em tempo real. Uma tal proximidade é puramente factual: é uma componente da imagem, não do valor, da sua importância ou do seu alcançe para a existência do telespectador. Essas, por mais "directos" que venham da China ou do Zimbabwe, situam-se do lado de cá da imagem, da vizinhança real dos corpos portugueses. Mais: se é verdade que o sentido final das imagens depende de todo aquele dispositivo discursivo e ritualístico que culmina na frase última do apresentador, então é logo no princípio que elas entram num circuito próprio de espaço e tempo que elimina completamente o presente real e o directo. Ou melhor, o directo não se opõe ao "irreal" que provém da distância e do passado, pelo contrário, ele fornece, por contraste, o álibi necessário para que as imagens sejam percepcionadas como pertencentes ao mundo da "vida".
E qual o tempo e o espaço desse mundo, e dessas imagens? São imagens de um perto que está longe, e de um próximo afastado no tempo. O directo oferece-nos o perto-longe da realidade das imagens: aquele Zimbabwe das imagens instantâneas, imediatas, situa-se em África... mas o presente directo daqueles africanos a correr não coexiste, não coincide com o meu presente aqui, sentado diante da televisão. Porquê? Porque nada da minha vida se liga ao Zimbabwe.
No fundo, os africanos [ou os brancos fazendeiros] que se arranjem.
A lonjura que impregna a percepção próxima e, por natureza, conservadora, paralizante, "territorializante". Cria barreiras, limita o espaço ao local, ao regional, afasta os homens que se situam além-fronteiras para uma esfera indefinida de sub-humanidade inconsistente. Os chineses? Mas quem são, afinal? São como nós, sim, mas... enfim, vi-os na televisão... Tien-An-Amen... Pois.
Se a percepção dos Chineses não fosse enevoada e longínqua, mas próxima, ao ponto de mexer com a minha vida, então esta deixaria de ser, também, para mim, estática e um pouco ausente como ela é.
Mas eu próprio pouco sei dessa ausência. Não me reconheço nela. Porque o perto-longe das imagens da China ou da Palestina entram na mesma atmosfera nevoenta do meu presente. Paradoxo: por um lado, a televisão fabrica-me representações de um mundo longínquo; por outro, esse é o mundo adequado ao meu mundo. É o que me convém: se as imagens do mundo não me dizem respeito, ou me dizem só longinquamente respeito, então está tudo bem assim, porque a minha imagem também só enevoada me diz respeito. Eu nem me apercebo do "longe", do "afastamento", da "ausência de mim a mim". Não há paradoxo, porque não há consciência dele. Não há sobressalto de pensamento. Tudo se mistura, talvez. Mas não "é a vida"?
Lembremo-nos que esta expressão vem de longe, e de uma outra zona discursiva: costumava terminar os comentários e análises de António Guterres, o primeiro-ministro socialista. Com uma leve carga de resignação, ela pretendia exprimir uma velha sabedoria cristã: aceitemos os males do mundo, os dissabores, tudo o que vai contra a nossa vontade, porque isso resulta de uma lógica e de um poder que nos ultrapassam. E já que a lógica do tempo histórico é imbatível, aproveitemos então para, na nossa pequena esfera, tirarmos pequenos benefícios individuais. O sentimento de responsabilidade por uma comunidade, por um país, parece ter desaparecido.
Em política, esse tipo de transferência de regras morais de conduta para a esfera governativa pode ser extremamente perigoso. A resignação leva à impotência, a passividade à inércia e ao imobilismo: o governo de Guterres caiu porque não governou, ponto final. O de Durão Barroso não terminou, por razões de conveniência pessoal do primeiro-ministro. O governo de Santana Lopes vive só de pequenos [ou grandes] gozos que a governação propicia.
Espiral
Suspender o som de todas as vozes
Suspender o som de todas as vezes
Suspender o som do que não me podes dizer
Querer percorrer velozmente
Sem pisar os espinhos
Cair numa redoma de qualquer coisa
Sem nome ainda
AL