agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sexta-feira, 31 de julho de 2009

aforismos


#

o desejo ficou órfão
no vão das escadas.
o eco do ardor ouve-se ainda
tudo é contrário
à natureza.


#

quero morrer agora
sem nenhuma nuvem
que me amarre
quero ser o gato
que não cai de
pé.

adeus. vou para a lua.


AL




quarta-feira, 29 de julho de 2009

Fenomenologia do rodapé

Fenomenologia do rodapé


Séculos e séculos de história resumem-se a notas de rodapé.
Do que disse nem uma nota de rodapé ficará.
E é bom assim. (1)


(1) Este texto é pura ficção e esta nota de rodapé deve ser entendida como tal.

AL

#9

não viu a flor que lhe ofereciam
nos olhos
ignorou todas as rosas que lhe deram
só via mãos vazias
agora sabe que os olhos alheios já lhe pertenciam
há muito

todas as rosas que não soube receber
deixaram um cheiro intenso

na distância recebe agora essas flores
na ausência sabe que agora é quase um quase

AL

domingo, 26 de julho de 2009

A Universidade contra a cultura | António Pinto Ribeiro


A Universidade contra a cultura

Como se explica que, numa turma de um curso de comunicação de uma universidade, nenhum dos trinta estudantes que a compõem saiba quem foi Bertold Brecht?

Como se entenderá que estes estudantes tenham atravessado os vários níveis de ensino - do pré-primário ao universitário – sem terem aprendido quem foi este autor e o que ele significa?! Brecht é um ponto de uma constelação que inclui um determinado teatro, uma determinada literatura, uma determinada teoria da comunicação (da rádio, em particular); faz parte de uma família de escritores que funda uma literatura deste século, que representa uma época histórica, um período fundamental da investigação científica na física, na astronomia, na medicina, uma perspectiva política, uma ideologia, etc. Estes estudantes passaram cerca de quinze anos em estabelecimentos de ensino e ficaram à margem de uma parte crucial da cultura artística deste século. Como foi possível?

Incompreensível, a não ser pelo anacronismo do ensino universitário que formou os professores e técnicos que se ocuparam destes estudantes durante quinze anos, e que só se justifica porque as universidades (mas também os politécnicos) estão contra a cultura, seja a cultura humanística e artística clássica (Ah! Moliére, esse grande pintor do séc. XIX – afirmaria outro), seja contra a cultura moderna e contemporânea. (pg. 19 e 20)

RIBEIRO, António Pinto (2000), Ser Feliz é Imoral?, Ensaios sobre Cultura, Cidades e Distribuição, Lisboa, Livros. Cotovia.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

As coisas são como são

As coisas são como são, não como queremos que elas sejam. Mas quando as coisas são como queremos que elas sejam, algo está errado, pois as coisas não podem ser como nós queremos. Melhor: as coisas não podem ser sempre como nós queremos, nem às vezes, porque se assim for, ficamos mal habituados. Por isso o que queremos há-se ser sempre o que não temos, não por que assim tenha de ser, mas porque temos de aprender a sofrer. Só assim saberemos dar valor às coisas, mesmo que essas coisas sejam o que não queremos. Cortar a língua e a vontade para aprender a não mais querer.

golpe #

Nem na felicidade, nem na tristeza.
Nem na saúde, nem na doença.
em nenhum dia de minha vida

o equílibrio

AL

#

Necesito
crer
que alguén me oirá
cando me suicide.

Lupe Gómez

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Aqui na Terra | Miguel Carvalho



AQUI NA TERRA, retrato de um país

És cruel

Meteste a tua filha num bordel
Enforcaste o teu caniche a um cordel
És cruel
(Ena pá 2000)

“todo o modelo reduzido tem uma vocação estética”
(Claude Lévi-Strauss)




Aqui há uns anos, as meninas faziam-se mulheres a aprender a fazer rosetas de crochet. Agora os nossos autarcas fazem rotundas. Continuamos a andar em círculos. Mudou a escala: as rosetas de crochet protegiam os sofás, o televisor e aprimoravam o enxoval. As redundantes rotundas são agora o enxoval dos nossos autarcas que vão remendando as suas fraquezas com um “urbanismo desgovernado e típico de um país atamancado” (pg. 19), um país onde vingam autarcas que “não perdem tempo com livros” (pg. 114) e que incentivam obras sem licença para estimular os investidores (pg. 114).

Um país autêntico nas suas flores de plástico e nas vacas para galego ver, nos coelhinhos de peluche, no vernáculo de Nel Monteiro, no padre Costa, povoador de Trancoso, nas rendas da Ruth Marlene, no agro-pop de Quim Barreiros (pg.101), nas praxes dos coveiros, nos milagres da IURD.

Descontextualizados do local original de publicação – Visão e Independente – estes textos tornam-se coisa outra, histórias que fogem ao controlo higienista da ASAE, mas que fazem parte da nossa identidade. Este é o Portugal piroso: aquele que não se mostra às visitas.

Miguel Carvalho abre aquela gaveta onde se guardam lembranças, bibelots, tarecos que não queremos que os outros vejam, mas que não podemos deitar fora. Não o faz, contudo, com desdém, com desprezo: fá-lo porque conhece este avesso.

O repórter com subtileza, com ironia, com verdade vai mostrando o que está para além das fachadas idealizadas da ruralidade (cf. A celebração, O martírio, A Agonia).

A miséria que nos é mostrada não é a do pobre, mas honrado, nem tão pouco a do pobre em ouro, mas rico em sonhos (cito de memória a canção da Floribella). É uma miséria muito mais próxima da Comunidade de Luiz Pacheco do que da mitificada casa portuguesa celebrizada pela Amália. Leia-se Pacheco:

“Somos gente pura: os mais novos não sabem o que é a promiscuidade, a minha rapariga se vir a palavra escrita deve achá-la muito comprida e custosa de soletrar: pro-mis-cu-i-da-de (pelo método João de Deus, em tipos normandos e cinzentos às risquinhas, até faz mal à vista!). A promiscuidade: eu gosto.” (Pacheco, 1998:116)

Conheça-se A via-sacra (pg. 85):

Um homem, a mulher e dois filhos vivem num espaço em que mal se podem mexer da cozinha para o quarto, com um corredor de permeio. E, no entanto, eis-nos num lar onde “se juram promessas de amor quase eterno.” (pg. 85)

Aqui na terra mostra-nos como não nos queremos ver: castiços, manhosos, pirosos e foleiros. Sem condescendências. Um Portugal desencontrado de si, que às vezes gosta de se dar ares.
Morte, vida, lágrimas, miséria, mofo, pobreza e um público sempre pronto a aplaudir os seus artistas, aqueles que, no querido mês de Agosto, preenchem um certo roliço imaginário erótico: e nós pimba! Um Woodstcok regado fartamente a vinho verde.

Um país que nos arrepia quando nos lembramos que só em 2005, se fez Abril no Marco de Canavezes; que já ninguém se lembra de assear a última morada do padre Max, nem do padre Max; mas que quer fazer estátuas a cónegos Melos e a outras bolorentas e salazarentas figuras de presépio; um país onde a tragédia de Entre-os-Rios fez entrar no vocabulário um novo estrangeirismo: briefing.

Aqui na Terra, de Miguel Carvalho é sobre nós. Sobre as nossas grandezas, sobre as nossas fraquezas. Sobre este ir estando e ir indo. Sobre a fé, a falta dela e a musiquinha que nos faz bater o pé.
Aqui na Terra, lido de rajada, mostra-nos um Portugal envergonhado, pobrezinho, remendado, remediado, mas nunca pior.


A capa de Aqui na Terra

Seis meninos Jesus souvenirs desencontrados, desfuncionalizados, disfuncionais de braços muito abertos, mas incapazes do abraço, de olhares mortos, inexpressivo. Meninos de barro sem serventia. Meninos que queremos esconder, porque são feios e só os aceitamos quando bem embrulhados numa teoria bem pós-moderna ou, se preferirmos, se a inserirmos num contexto camp (cf. Sontag).


Susan Sontag define o camp como “uma visão do mundo em termos de estilo – mas uma espécie particular de estilo. É o amor pelo excessivo, pelo “off”, pelas coisas-que-são-como-não-são.” (Sontag, 2004:320). E estes meninos, que são feios, muitos feios, não deixam de nos trazer alguma nostalgia, de despertar uma certa afectividade, de provocar o riso: "A essência do Camp é destronar o sério. O camp é divertido, anti-sério. Mais precisamente, o camp envolve uma nova relação, mais complexa com o “sério”. Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do sério.'' (idem, ibidem:332)


Com graça, Sontag conclui que “A descoberta do bom gosto do mau gosto pode ser muito libertadora. Quem insiste nos prazeres elevados e sérios está privar-se do prazer; está continuamente a restringir as fontes de prazer ao exercer continuamente o seu bom gosto acabará por lhe atribuir um valor que o coloca fora do mercado, por assim dizer." (idem, ibidem:336-7).


Não sei se o Miguel Carvalho está a par das teorias sobre o camp, mas acho que as interiorizou muito bem:


Em palco, Nel é um leão.
E entre avés marias e vivas à emigração, pede aos jovens para não se viciarem no mal e ao povo para exigir dos governantes medidas para quem precisa.
«Obrigado, camaradas», diz, no final de mais uma canção, vivida em êxtase.
O concerto acaba com peças de roupa no ar, a população em delírio.
Nel ainda cantava mais uma se o deixassem. Mas já chega.
Despede-se. «Não ofendi ninguém. Só vim falar das injustiças que fazem à classe operária». Pimba!” (pg. 104)

Voltemos à capa. Diz Torga, não sobre estes meninos, mas sobre os não menos típicos galos de Barcelos, que “a prova [da falta de habilidade] estava no próprio silêncio dos galos de barro, que na fisiologia moldada e nas asas tingidas não anunciavam qualquer amanhecer. O sangue das veias e da crista era postiço” (Torga, 1990:18). Torga falava na decepção com os galos que ele queria com vida, com outra vida e saiam-lhe toscos e inautênticos.

É o que a capa anuncia: o postiço que de tão postiço acaba por ser autêntico. Paradoxal? Incongruente? Pois claro. Não há coerências possíveis ou desejáveis, numa terra onde se encontra o riso misturado com a tragédia, a dor a embalar a vida, a fé nos milagres que hão-de chegar, a manhosice:

“ para o proprietário de uma das barraquinhas alugadas pelo Santuário, o ano do euro é que foi mesmo o ano... de ouro. «As pessoas faziam mal as contas e ganhou-se muito dinheiro», recorda, com um sorriso nos lábios.” (pg. 21)

[sobre a capa vale a pena ler Zaclis Oliveira]

Última (e breve nota)

Em parte alguma comparece, em Aqui na Terra, o gato Floco, celebrizado no blogue http://adevidacomedia.wordpress.com/. Contudo, há gato em Aqui na Terra. Há o arranhar da trilogia Deus, Pátria e Família, há um ronronar perante uma Ruth Marlene e um Nel Monteiro, há um sorriso de gato, sem gato (Cf. Lewis Carroll) face às tropelias dos coveiros e há mistério (recordemos o Padre Max). Mas, acho que o o Floco terá muito mais a dizer.

Bibliografia

Carvalho, Miguel, Aqui na Terra, Deriva Editores, 2009.
ALVES, Vera Marques «CAMPONESES ESTETAS» NO ESTADO NOVO: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional, -ISCTE Departamento de Antropologia Lisboa, 2007 [disponível em
https://repositorio.iscte.pt/bitstream/10071/1349/1/Tese+Vera+Alves.pdf]
PACHECO, Luiz, Exercícios de Estilo, Ed. Estampa, 1998, 3.ª ed.
SONTAG, Susan, Contra a Interpretação e Outros Ensaios, [Agains Interpretation and Other Essays, 1961, trad. port. José Lima],. Lisboa, Gótica, 2004.
TORGA, Miguel, Portugal, Coimbra, 1990, 6.ª ed.

domingo, 19 de julho de 2009

Actual?


A cultura serve para ministro, secretário de estado, directores-gerais, administradores da burocracia rentável, professores faculdadescos que distribuem por estruturas o sofrimento alheio. Pode até servir para dona de casa. Mas aos seus efectivos produtores bastarão os fármacos, o álcool, os narcóticos, o exílio, a cada vez mais extrema e final solidão se não tiverem sabido ou podido, prévia e previdentemente, sujeitar-se aos funcionalismos, às famílias. ao seguro de vida. E, pior ainda do que pensar que se trata apenas de um caso do sub-desenvolvimento colectivo, começo a acreditar que será quase sempre assim.

Joaquim Manuel Magalhães, Joaquim Manuel MAgalhães, Ed. Presença, Lisboa, 1989 (pg. 70)

sábado, 18 de julho de 2009

É a vida, José Gil

COMO CONVÉM TELEVIVER

José Gil, Portugal, Hoje - O Medo de Existir, Relógio D'Água, Lisboa, 2005

"É a vida". Esta frase com que o apresentador da RTP termina amiúde o Jornal da Noite dá o tema do ambiente mental em que vivemos. "Dar o tom" significa muito mais do que "sugerir" ou "indicar" uma direcção de leitura. Na realidade, constitui por si só toda uma "visão do mundo" e, mais importante, toda uma visão de nós mesmos, da nossa vida enquanto [tele]espectadores do mundo.

Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação, mortos palestinianos e israelitas, descobertas de centenas de vítimas taliban asfixiadas em contentores no Afeganistão, surge uma notícia que, como uma luz divina, redime todo o mal espalhado pela Terra: nasceu um bebé panda no Zoo de Pequim! O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com um tom sábio: "É a vida!"

É a vida ,pois. Que mais quereis? É a vidalá fora, não há nada a fazer, é assim, vivei a vossa com paz e serenidade, não há nada a temer, é lá longe que tudo acontece e, no entanto, estou aqui eu para vo-lo mostrar inteiro, o mundo, ide, ide às vossas ocupações que a vida continua.

Com este tom detinado a sossegar os espíritos, o apresentador envia-nos várias mensagens precisas: 1. A vida é uma mistura de bem e mal, o homem está entre a besta e o anjo, e isto constitui a essência do mundo, que foi, é, e será sempre feito dessa mesma massa; 2. A frase impõe uma norma: eis o que se pode, e portanto, deve pensar do que acabámos de ver em todo o planeta. Norma metafísico-moral, ou melhor, norma ligeiramente eivada de metafísica que assim recolhe e reúne num só, todo o tipo de observações, de reflexões, pensamentos que as imagens televisivas suscitariam. É pois, uma norma para o pensamento: diz-nos como e o que pensar do mundo: e segundo a maneira de pensar, pensamo-nos também a nós face ao mundo, mas como se estivéssemos dentro dele, como sua parte integrante. Cria-se aqui uma pequena transcendência, imperceptível mas indelével, que constitui o efeito profundo do imperativo metafísico-moral: o telespectador é colocado dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não o vivendo. "É a vida", a nossa, a de todos, aquela que vivemos - e, no entanto, a vida é um espectáculo de imagens a que vós acabais de assistir. De fora, porque ele está fora de nós.

Estamos fora da vida, dentro dela: "é a vida!..." É esta mistura confusa de transcendência-imanência da nossa vida à Vida que provoca um nevoeiro no espírito.

Um terceiro aspecto não menos importante: 3. A norma neutraliza quaisquer veleidades de um discurso que se desvie deste bom senso que ela irrecusavelmente revela. A norma impõe limites imperceptíveis [porque internos] ao pensamento e, certamente também, à acção. Tudo o que vivemos, a barbárie, o excesso, a crueldade mais insuportável são compensados, reequilibrados pelo sorriso, e o golpe do panda: é o que nos diz o metadiscurso final [a frase] do apresentador. Ou seja, aquilo, o crime e o sangue, não é a vidaainda; só começa a pertencer à sua esfera com o surgimento do bebé panda.

Inocula-se assim, no seio das imagens, uma outra dose de nevoeiro: o que vistes não é o que vistes, mas o que só agora estais a ver, que é o que vistes menos o que julgastes ver porque o bebé panda vo-lo retirou.

Mas não só as imagens perdem significado. Também o discurso é desfalcado das últimas implicações de sentido que encerram. Quando o discurso de Bush representava uma ameaça real de guerra contra o Iraque, nós não nos sentíamos implicados, porque "a vida é assim", as palavras e as intenções bélicas do presidente americano entravam no equilíbrio geral da vida, segundo a sabedoria do bom senso. Não haveria guerra no Iraque como não há propriamente ameaças, hoje, de um conflito futuro no Irão. Uma espécie de caricatura de harmonia preestabelecida regula assim, noite após noite do jornal televisivo, o curso da história, recolocando o fiel da balança no justo meio, que selecciona sem dúvida a parte melhor, a mais justa, aquela que é mais metade que a simples metade.

Não se trata, a bem dizer, do "curso da história": dado o cariz metafísico da norma, as imagens apresentam antes a essência do mundo e não o movimento da história, o qual se esbate num horizonte longínquo, de onde se manifesta apenas um pulsar ténue de signos-índices ["sim, lá estão os atentados palestinianos... a expulsão dos fazendeiros brancos no Zimbabwe..."].

Ao supor a harmonia preestabelecida segundo o bom senso [o mal e o bem equitativamente repartidos no mundo], a norma impõe limites negativos ao pensamento [exclui o excesso, o desiquilíbrio, o anormal], sem que se veja bem como induz ao memso tempo uma certa orientação na maneira de pensar. Ou seja: a norma oferece também conteúdos positivos?

Ela diz o que se deve pensar como essência de todos os acontecimentos do mundo. No desfile caótico das imagens - triplamente caótico: como imagens de caos; quer dizer como caos de imagens vindas das regiões mais heteróclitas do sentido; como imagens que se aparelham linearmente como se se anulasse assim o caos narrativo, uniformizando-lhe o sentido, roubando-lhes a singularidade, criando um outro caos, o do afundamento do significado das imagens - a frase final do apresentador introduz ordem, segurança, uma realidade pensável. No entanto, o que se deve pensar aparece revestido numa categoria tão geral e totalizante, que nenhum dos enunciados possíveis extraídos das imagens se poderia desenvolver autonomamente, seguindo a sua linha própria. "É a vida" engloba-o, e apaga a relevância eventual deste ou daquele enunciado ou imagem concreta. Por isso, ao querer significar tudo, não significa nada. É uma frase vazia, despida de conteúdo. Mais gorda e pretensiosa, que se quer mostrar pletórica de sentido. Pura injunção formal, nada diz, senão limites e regras para não pensar.

Tanto mais que a sua função designativa esconde subtilmente a carga performativa que traz consigo. "É a vida" não está apenas a indicar o que se acaba de ver no cortejo de imagens, mas vem no fim de cada ritual como um gesto terminal que fecha a sessão enquanto a designa, escapando-lhe assim. É que "É a vida" pertence à Vida como as outras imagens, os outros gestos, os outros comentários dos repórteres em directo, como os discursos e as imagens dos observadores convidados - a série de palavras, gestos, deslocamentos no palco da TV de pessoas que entram e saem, participando ou não no Telejornal -, e tudo isto faz parte da vida e com ela se mistura.

Enunciado ambíguo pois, por um lado, ao fechar o ritual, o apresentador exclui-se da vida [as imagens desapareceram, só ele resta no palco], e por outro, inclui-se nela, mais fortemente mesmo do que se exclui. Só naquele instante, naquele tempo mínimo em que se exibe sozinho proferindo a frase, a Vida se reequilibra e ganha o sentido do bom senso, a consistência e a existência reais que lhe são dadas pela conivência imposta ao telespectador. Ele dirige-se directamente a nós implicando-nos nessa Vida de que ele é um elemento, e o exemplo mais irrecusável, com o seu sorriso competente e sedutor, as palavras que nos entram pela cabeça dentro para nos fazer suportar o mundo... Ele, o apresentador, agora despojado de imagens, penetra subitamente no mundo real que é o nosso, nas nossas casas diante da televisão, e conecta-o com subtileza com o mundo das imagens, para dar forma a uma nova identidade: "a Vida", em que estamos todos.

A este nível também [nível do ritual da comunicação das notícias] contrói-se um nevoeiro que nos envolve e não nos deixa distinguir com clareza o real do "irreal" [chamemos assim, provisoriamente, ao que nos fica do estatuto de realidade as imagens do telejornal, depois do tratamento a que foram submetidas e que acabámos de descrever]. E, mais uma vez, o nevoeiro é invisível, pois tudo parece nítido, claro, com contornos bem definidos. No entanto, como vimos, basta perguntar pela função daquela frase do apresentador para verificarmos que ela segrega múltiplas camadas de confusão que não se vêem, mas que lhe condicionam radicalmente o sentido. Como um inconsciente que se alojasse no seio das representações mais conscientes. Como uma sombra branca.

Uma consequência maior da criação do nevoeiro [ou do "irreal" imperceptível] é o afastamento do real apresentado - mesmo em directo - do presente do telespectador: que será contaminado de seguida por esse regime de irrealidade.

Onde se situa o Iraque, Israel, a China da televisão? Quando eles são notícia, vai imediatamente para lá um repórter que nos fala em directo. Estão pois ao nosso lado, aqui mesmo, em tempo real. Uma tal proximidade é puramente factual: é uma componente da imagem, não do valor, da sua importância ou do seu alcançe para a existência do telespectador. Essas, por mais "directos" que venham da China ou do Zimbabwe, situam-se do lado de cá da imagem, da vizinhança real dos corpos portugueses. Mais: se é verdade que o sentido final das imagens depende de todo aquele dispositivo discursivo e ritualístico que culmina na frase última do apresentador, então é logo no princípio que elas entram num circuito próprio de espaço e tempo que elimina completamente o presente real e o directo. Ou melhor, o directo não se opõe ao "irreal" que provém da distância e do passado, pelo contrário, ele fornece, por contraste, o álibi necessário para que as imagens sejam percepcionadas como pertencentes ao mundo da "vida".

E qual o tempo e o espaço desse mundo, e dessas imagens? São imagens de um perto que está longe, e de um próximo afastado no tempo. O directo oferece-nos o perto-longe da realidade das imagens: aquele Zimbabwe das imagens instantâneas, imediatas, situa-se em África... mas o presente directo daqueles africanos a correr não coexiste, não coincide com o meu presente aqui, sentado diante da televisão. Porquê? Porque nada da minha vida se liga ao Zimbabwe.

No fundo, os africanos [ou os brancos fazendeiros] que se arranjem.

A lonjura que impregna a percepção próxima e, por natureza, conservadora, paralizante, "territorializante". Cria barreiras, limita o espaço ao local, ao regional, afasta os homens que se situam além-fronteiras para uma esfera indefinida de sub-humanidade inconsistente. Os chineses? Mas quem são, afinal? São como nós, sim, mas... enfim, vi-os na televisão... Tien-An-Amen... Pois.

Se a percepção dos Chineses não fosse enevoada e longínqua, mas próxima, ao ponto de mexer com a minha vida, então esta deixaria de ser, também, para mim, estática e um pouco ausente como ela é.

Mas eu próprio pouco sei dessa ausência. Não me reconheço nela. Porque o perto-longe das imagens da China ou da Palestina entram na mesma atmosfera nevoenta do meu presente. Paradoxo: por um lado, a televisão fabrica-me representações de um mundo longínquo; por outro, esse é o mundo adequado ao meu mundo. É o que me convém: se as imagens do mundo não me dizem respeito, ou me dizem só longinquamente respeito, então está tudo bem assim, porque a minha imagem também só enevoada me diz respeito. Eu nem me apercebo do "longe", do "afastamento", da "ausência de mim a mim". Não há paradoxo, porque não há consciência dele. Não há sobressalto de pensamento. Tudo se mistura, talvez. Mas não "é a vida"?

Lembremo-nos que esta expressão vem de longe, e de uma outra zona discursiva: costumava terminar os comentários e análises de António Guterres, o primeiro-ministro socialista. Com uma leve carga de resignação, ela pretendia exprimir uma velha sabedoria cristã: aceitemos os males do mundo, os dissabores, tudo o que vai contra a nossa vontade, porque isso resulta de uma lógica e de um poder que nos ultrapassam. E já que a lógica do tempo histórico é imbatível, aproveitemos então para, na nossa pequena esfera, tirarmos pequenos benefícios individuais. O sentimento de responsabilidade por uma comunidade, por um país, parece ter desaparecido.

Em política, esse tipo de transferência de regras morais de conduta para a esfera governativa pode ser extremamente perigoso. A resignação leva à impotência, a passividade à inércia e ao imobilismo: o governo de Guterres caiu porque não governou, ponto final. O de Durão Barroso não terminou, por razões de conveniência pessoal do primeiro-ministro. O governo de Santana Lopes vive só de pequenos [ou grandes] gozos que a governação propicia.

Expresso Actual, 18 Jul 2009. Pages 32 - 33




Expresso Actual
18 Jul 2009

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Espiral

Espiral


Suspender o
som de todas as vozes
Suspender o
som de todas as vezes
Suspender o som do que não me podes dizer
Querer percorrer velozmente
Sem pisar os espinhos
Cair numa redoma de qualquer coisa
Sem nome ainda


AL

domingo, 12 de julho de 2009

Jean Dubuffet

O homem de cultura está tão longe do artista como o historiador do homem de acção.

Jean Dubuffet

sábado, 4 de julho de 2009

A urgência da obra completa

Duane Hanson
A urgência da obra completa



A construção de uma obra passa por uma estádio de sedimentação, de acumulação, de depuração e de transformação e este processo implica um tempo mais ou menos dilatado. Reunir a obra completa de um autor implica uma totalização e uma unificação, o que na maior parte das vezes lhe retira legibilidade, transformando-a num mero objecto estético, massificado e precipitado.

O trabalho de compilação e de concatenação de uma obra esteve, durante muito tempo, intimamente ligado a processos de legitimação póstumos, pois o labor de qualquer autor, enquanto ainda está vivo, faz-nos crer que a sua obra está ainda incompleta, aliás, José Ricardo Nunes na nota prévia a 9 poetas para o século XXI (Nunes, 2002) fala em “páginas em construção” (idem, ibidem:7) a propósito da construção de um cânone autoral. Contudo a realidade que observamos contraria isto mesmo: vivemos num tempo de obras completas, de poesia reunida. Um tempo acelerado (cf. Virilio) que corrompe o labore limae que faz parte integrante da edificação de um corpus sólido e digno. Até há poucos anos, só os autores com carreira longa e sedimentada (ou então depositados no frio mármore) tinham direito à consagração através da publicação da obra completa em sólidos volumes. No entanto, nos últimos tempos as obras poéticas reunidas vêm-se acumulando de uma forma excessiva e abundante, reproduzindo, no campo poético, uma sociedade de consumo massiva e massificada, que, concomitantemente procura dar visibilidade a livros desaparecidos do mercado que, pela sua tiragem reduzida, apenas se encontram a custo em alguns alfarrabistas.

A obra reunida «deprecia toda a experiência artística» (Adorno, 2003: 79), um vez que «o bem cultural apresenta-se como um produto acabado», é de certa forma «o selo da alienação radical entre o consumidor e o produto» (idem, ibidem:79). O «aparelho», usando a terminologia adorniana, encaminha o consumidor (note-se que propositadamente não digo o leitor) para a aquisição da obra como forma de o tornar mais apetrechado e informado, impede-se assim que cada «indivíduo isolado passe pela vergonha de parecer tão estúpido como todos os outros. A cultura de massas é uma sinalética de auto-referência. Os milhões de indivíduos das classes baixas, antes excluídos dos bens culturais e agora para eles aliciado, proporcionam o pretexto oportuno para esta viragem no sentido da informação» (idem, ibidem:79).

Neste momento a obra completa (ou tão completa quanto possível) tornou-se num produto cultural, digno de constar na estante, mas que perdeu a legibilidade. Se até há bem pouco tempo a publicação da obra poética reunida, em especial por algumas editoras (e aqui o nome do editor Hermínio Monteiro é incontornável), se inscrevia numa lógica de distinção, hoje em dia isso pouco ou nada significa: passou a ser apenas mais um factor de visibilidade e de mercantilização. Gemán Gullón distingue mesmo entre compradores e consumidores, sendo que estes últimos «se deixam levar pelas vantagens do uso estabelecido» (Gullón, 2004:26). A verdade é que em termos puramente economicistas é mais vantajoso para o consumidor investir na obra reunida, do que acumular todas as publicações poéticas de um autor.

A publicação destas obras completas funciona como uma forma de satisfazer quer as necessidades do hiperconsumidor de que nos fala Lipovetsky - aquele que deseja satisfazer as necessidades culturais rapidamente - e, por outro lado, se antes «os artistas e os homens de letras ambicionavam criar obras imortais; agora o que importa é ser-se «conhecido», aparecer nos media, vender um elevado número de produtos com esperança de vida limitada» (Lipovetsky, 2007:304). Queremos acreditar que a pressão para a edição destes volumes parte mais do mercado, do que da vaidade do poeta.

Depois de durante quase uma década termos vivido imersos em antologias poéticas promocionais, estamos agora em período de obras completas, incompletas e/ou inacabadas. Para falar com mais propriedade destas compilações, abro aqui um amplo parêntese em relação às antologias, uma vez que há agora um deslocamento de alguns autores aí promovidos para obras onde se reúne, agora, num único volume, a toda a sua obra poética produzida. Com estas obras “completas” não está em causa a validação artística do autor (ou a sua qualidade), mas o mecanismo que pretende promover a venda de livros, enquanto objectos que se têm, mas que não se lêem. Trata-se de uma óbvia contaminação da esfera cultural, social e económica. A publicação da obra, nestes casos, esvazia o próprio conceito de obra. Quando falo de antologias promocionais, refiro-me, apenas, às três mais representativas: Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1997) organizada por Pedro Mexia; Anos 90 e Agora (2001) organizada por Jorge Reis-Sá e Poetas sem qualidades (2002) da responsabilidade de Manuel de Freitas. A antologia coordenada por Pedro Mexia, que comemora agora uma década, recolhe catorze poetas: Adelino Sousa, Fernando Luís, Fernando Pinto Amaral, João Luís Barreto Guimarães, Joaquim Cardoso Dias, Jorge Sousa Braga, José Carlos Barros, José Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Filipe Parrado, Luís Quintais, Nuno Artur Silva, Paulo Jorge Fidalgo e Teresa Leonor Vale . A antologia organizada por Jorge Reis-Sá, mais ampla, recolhe textos de Ana Luísa Amaral, Ana Marques Gastão, Ana Paula Inácio, Carlos Saraiva Pinto, Daniel Faria, Fernando Pinto Amaral, Jorge Gomes Miranda, Jorge Melícias, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Manuel Gusmão, Maria Rosário Pedreira, Paulo Jorge Miranda, Pedro Mexia, Rui Cóias, Rui Pires Cabral, valter hugo mãe, Vasco Ferreira Campos e Vasco Gato. Finalmente, Poetas sem Qualidades (2002) reúne Carlos Alberto Machado, Ana Paula Inácio, Carlos Luís Bessa, Rui Pires Cabral, João Miguel Queirós, Nuno Moura, Vindeirinho e um autor anónimo.

Passados dez ou menos anos sobre algumas destas antologias, encontramos nos poetas aí recolhidos alguns que (já) têm uma obra poética reunida em um só volume: Fernando Pinto Amaral, Jorge Sousa Braga, Ana Luísa Amaral, Daniel Faria (esta obra de facto completa, em virtude da morte prematura do autor) e José Tolentino Mendonça. Mais curioso é ainda comparar os Anuários de Poesia de 1984 e 1985, da Assírio & Alvim onde se antologiam autores não publicados e constatar que alguns deles já têm obra reunida, nomeadamente, Adília Lopes e Daniel Maia-Pinto Rodrigues.

Pegando, por exemplo, no caso de Fernando Pinto Amaral, reparamos que três livros de poesia - Acédia (1990), A Escada de Jacob (1993) e Às Cegas (1997) - autorizaram já a publicação dos três em um em Poesia Reunida 1990-2000 (2000) pela editora D. Quixote. Ou, no caso de Jorge Sousa Braga, A Ferida Aberta (Braga , 2006) publicada no final do ano passado, já está incluída no volume de poesia completa O poeta Nu (Braga, 2007) da Assírio & Alvim.
Se acrescentarmos aos nomes já referidos, os poetas recolhidos na antologia Desfocados Pelo Vento (2004), constatamos que de entre os dezoito nomes aí antologiados, nove têm já a sua obra publicada em compactos volumes: Adília Lopes, Amadeu Baptista, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Francisco José Viegas, Inês Lourenço, Isabel de Sá, Jorge de Sousa Braga, Luís Filipe Castro Mendes, Rosa Alice Branco.
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, por exemplo, que em Dióspiro (Rodrigues, 2007) reúne a sua obra completa, havia ainda recentemente, em Malva 62 (Rodrigues, 2005), coligido, recolhido, montado e depurado alguns poemas seus. Não é uma estratégia nova, o direito à auto-referencialidade é total e à reescrita também – outros o fizeram e continuam a fazê-lo bem - parece-me, contudo, que a voracidade da publicação retira valor ao verso e traz, ou pode trazer, decepção ao leitor.
Nas obras ditas completas não está em causa apenas o sucesso nas vendas ( na poesia um sucesso sempre muito relativo), mas o reconhecimento pelos pares e a visibilidade. Aliás, muitas vezes, o sucesso económico imediato (coisa rara), especialmente num campo elitista como é o campo poético, faz com que o autor seja imediatamente repudiado pelos seus pares: «ora estamos com efeito num mundo económico de pernas para o ar: o artista só pode triunfar no terreno simbólico perdendo no terreno económico (pelo menos a curto prazo), e inversamente (pelo menos a longo prazo).» (Bourdieu, 1996:105). Aqueles que encontram com facilidade bom acolhimento entre o público são, regra geral, repudiados pela massa crítica.
O que se passa é que os jovens poetas contemporâneos (e na literatura o conceito de juventude é amplamente alargado) adquiriram na última década um valor de mercado que tem sido explorado até à exaustão quer pelas antologias, quer pelas obras reunidas. Esta estratégia de publicação promove uma canibalização dos títulos e reduz o ciclo de vida de cada livro, não deixando que os textos amadureçam.

Os livros de poesia são processos cumulativos que implicam a construção de um labor intelectual: nos e com os (pequenos) livros de poesia cresce uma cumplicidade que se vai estreitando entre o poeta, o livro e o leitor. O leitor de poesia procura acompanhar livro a livro a obra dos seus poetas, crescendo com os livros e com as leituras que deles faz. Cria-se uma relação de cumplicidade: cada livro de poesia é uma jóia rara até devido à sua tiragem limitada. Quando a obra é publicada num todo, quebra-se esta magia, sendo este processo quase geológico arruinado, já que se perde o prazer do processo de construção, sedimentação e de crescimento. Face ao panorama actual, a publicação da obra toda nem legitima o autor, nem prestigia a editora, nem restaura laços de confiança entre leitores iniciados. A publicação em grossos volumes não favorece o prazer da leitura , pode, eventualmente, favorecer outro tipo de usos (nomeadamente o da burguesa ostentação). Manguel, sem grande novidade, refere que «os livros revelam-se através dos seus títulos, dos seus autores, do lugar que ocupam numa estante, das ilustrações da capa, os livros também se revelam pelo tamanho.» (Manguel,1998: 135)

Argumentos como a democratização da cultura e a dessacralização do género lírico não são razões válidas para a publicação deste tipo de obra poética reunida, porque se a intenção é aumentar o número de leitores isso não acontece. Estes são livros de estante (cf. Santos) que favorecem processos cumulativos, mas que ignoraram o compromisso, a regularidade, o gosto de quem lê poesia. A experiência estética do livro de poesia passa pela fruição sensitiva e racionalizante que uma obra totalitária quebra. A obra toda não funciona pois, além dos aspectos práticos, perdem-se os fios que fazem que cada «pequeno» seja livro seja um corpo harmónico e organizado.

As obras completas promovem uma política de consumo cultural que abrangem uma franja de público ávida de mostrar que têm. Com o acumular de obras completas que ainda o não são, estamos em presença da poluição dromosférica de que nos fala Virilio, uma poluição «que atinge a vivacidade do sujeito e a mobilidade do objecto, a ponto de o tornar inútil» (Virilio, 2000 :60).
A publicação de obras completas pode ser justificada com a necessidade de recuperar títulos esgotados, edições de autor, mas ainda assim creio que seria mais interessante para o editor (e mesmo para o leitor) criar o hábito da reedição dos livros de poesia, do que criar obras completas que o não são de facto, ou por não serem (ainda) completas ou por não serem obras na verdadeira acepção da palavra.

Paula Cruz, 2007


Notas

[1] A propósito destas três antologias, escreve Jorge Reis-Sá, autor de uma delas, no Suplemento «Mil Folhas», do jornal Público, 26 de Julho de 2003:

«A mais festejada [das antologias] tem como figuras tutelares Pedro Mexia e Manuel de Freitas. Este, organizador da "tendenciosíssima" (não, não é uma crítica depreciativa) antologia "Poetas Sem Qualidades", tendo editado em três anos oito (!) livros, parece querer ser porta-estandarte de toda a poesia quando em verdade a sua geração se vê em oposição a novos grupos perfeitamente definidos: outros escrevem outras coisas, tão ou mais interessantes. Manuel de Freiras é o arauto da "pobreza franciscana", introduzida por Luís Adriano Carlos no último número da revista "Apeadeiro", devedora em tudo da "rima pobre" de Joaquim Manuel Magalhães e, nas palavras do seu outro mais importante cultivador, Pedro Mexia, saindo "directamente dos anos 70". Outros poetas surgem neste grupo, homogeneizado pelas razões que tentarei explanar mais à frente: Carlos Luís Bessa, Jorge Gomes Miranda, José Miguel Silva, Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral. Um franciscanismo despojado de metáforas, pobre, que em vez de escrever a poesia como uma arte sublime a retém nos urinóis, nos "shoppings" e nos telemóveis, aproximando-a, a espaços, de referências eruditas como Bach e os clássicos literários, como que estabelecendo a erudição que um "shopping" não fornece. Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral destacam-se deste grupo por conseguirem ultrapassar exactamente o simplismo em que resultam as poéticas dos outros autores.» Sem querer fazer juízos de valor, note-se que Jorge Reis-Sá é responsável pelas edições Quasi, que publicaram a poeta Ana Paula Inácio e o poeta Rui Pires Cabral. Aparentemente o elogio a estes autores advém da sua qualidade de editor e não tanto de crítico.

[1] Só alguns exemplos: O Que Foi Passado a Limpo de Armando Silva Carvalho, 592 páginas; Poesia Reunida - 1990-2000 de Fernando Pinto Amaral , 496 páginas; Dióspiro, de Daniel Maia-Pinto Rodrigues, 416 páginas; Poesia Reunida, 1990-2005 de Ana Luísa Amaral, 475 páginas; Repetir o Poema: 1979-1999 de Isabel de Sá, 396 páginas; Soletrar o Dia: Obra Poética de Rosa Alice Branco, 253 páginas e Metade da Vida de Francisco José Viegas, 219 páginas.


Bibliografia:
Adorno, W. Theodor

(2003) Sobre a Indústria da Cultura (org. António Sousa Ribeiro), Angelus Novus, Coimbra.

Bourdieu, Pierre

(1996) As regras da Arte, (trad. Miguel Serras Pereira), Editorial Presença, Lisboa
(2001 ) O Poder Simbólico, (trad. Fernando tomaz),, Difel, Lisboa, 4ª ed.

Furtado, Afonso José, (2000), Os livros e as leituras, novas ecologias da informação, Livros e Leituras, Lisboa.

Freitas, Manuel de (org.) (2002), Poetas sem Qualidades, Averno, Lisboa.

Gullón, Germán, (2004) Los mercaderes en el templo de la literatura, Caballo de Troya, Madrid.

Huyssen, Andreas (1986) After the Great Divide, modernism, mass culture and Postmodernism, Macmillian, Londres.

Lipovetsky, Gilles (2007) A felicidade Paradoxal, Ensaio sobre a Sociedade do hiperconsumo, (trad. Patrícia Xavier), Ed. 70, Lisboa.

mãe valter hugo (sel. e org.), (2004) Desfocados pelo vento, antologia, edições quasi, V.N. Famalicão.

Manguel, Alberto (1999), Uma Historia da leitura (trad. Ana Saldanha), Editorial Presença, Lisboa, 2ªed.

Martins, Jorge M., (1999) Marketing do Livro, materiais para uma sociologia do editor português, Celta, Oeiras.

Mexia, Pedro (coord.), (1997), Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Contador de Histórias e C- M. de Tomar.

Sá, Jorge Reis (2001) Anos 90 e agora, Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa
edições quasi, V. N. Famalicão

Santos, Maria de Lurdes Lima dos (1992) «O Público-leitor e a apropriação do texto escrito» in a Percepção estética e públicos de escultura, Acarte, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Virilio, Paul (2000), A velocidade de libertação, (trad. Edmundo Cordeiro), Relógio d´Água, Lisboa.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O Mundo Sólido, de João Paulo Sousa

Eclipse de Antonioni, 1962

Assim o passado é absoluto para tudo o que é já passado, se desprendeu já de nós.” (Vergílio Ferreira)


Em Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, Giordano Bruno demonstra que o mundo é infinito quanto ao espaço e quanto ao tempo (que, portanto, nada existe fora dele, e que não teve começo e não terá fim). Não há um centro, ou melhor tudo, é centro. A solidez, a estabilidade, as certezas não existem, dando lugar assim à multiplicidade, à fragmentação, à fragilidade. Esta posição anti-aristotélica pagou-a Giordano Bruno com a vida.

Giordano Bruno desafia O Mundo Sólido. É uma presença irónica, pois conhece, à partida, a impossibilidade desse mesmo mundo uno, denso, consistente. O artigo (bem) definido no título da obra - O Mundo Sólido - determina a tentativa da completude: não se trata de “um” qualquer mundo entre mundos, mas de “o” mundo.
Giordano Bruno, Francisco e seu pai estão ligados não apenas por um acidente temporal - 52 anos – mas pela incomunicabilidade. Pela impossibilidade de comunicar, de dizer de si.
Neste sentido, o romance de João Paulo Sousa não é apenas uma obra do hoje, pelo contrário, reflecte uma problemática comum àqueles que se pensam desde sempre. A isto se chama angústia: “a ansiedade sente-se como a angústia se pensa. Mais do que um fenómeno da sensibilidade diria que a angústia é um fenómeno mental, ainda que a sensibilidade nela, enfim, se reconheça” (Ferreira, 1987: 60)

Os silêncios que encontramos em O Mundo Sólido são angustiados, dolorosos, , asfixiantes. Os exemplos abundam: “ violência silenciosa” (pg.7), “aquele silêncio começara a incomodá-la” (pg. 12), “aquele silêncio, decerto em consequência da intensidade com que eu tinha recebido as palavras da Paola, adquirira espessura e transformara-se em mutismo.” (pg.15), “ouvi-a de novo em silêncio e senti-me tão mal” (pg.18), “silêncio feroz”.(pg. 36), “envolto num silêncio que me separava do mundo” (pg 55), “Os silêncios em que ela se fechava “(pg. 89 ), “O silêncio em que me fechara transformou-se depressa num exílio interior” (pg. 91), “silêncio mútuo” (pg. 94 ). Há uma hiper-consciência do silêncio que se reflecte numa percepção exacerbada dos mecanismos do corpo: as palpitações, as tonturas, a vertigem, o desmaio, a respiração descontrolada, o medo.

Os silêncios de O Mundo Sólido não são apaziguadores: são fruto de uma contenção consciente, de um pudor excessivo, de um medo de intimidade. O respeito pelo espaço do outro é tanto, que Francisco vai morrendo enclausurado dentro de si:

Cada minuto que passava valia mais dentro do tempo que faltava para nos separarmos, e a consciência desse facto constituía-se, para mim, na razão de uma dor crescente, em resultado da dificuldade, que eu sentia como cada vez maior, de romper o silêncio e pedir à Paola que não me deixasse, que nunca me abandonasse.” (pg. 127)

Numa modernidade líquida (cf. Bauman), Francisco, o narrador, procura solidez e encontra solidão acompanhada. Ironia: Francisco é arquitecto: desenha mundos.
O texto de João Paulo Sousa é, na forma, sólido. Não há parágrafos, não há capítulos … eppur si muove. Move-se , sem que Francisco faça muito por isso:
A morte da minha mulher, ocorrida tão pouco tempo depois do reconhecimento clínico da sua doença, libertou-me do cerco em que eu me deixara encerrar e deu-me a possibilidade de respirar de novo a plenos pulmões, como é costume dizer-se, o que, no entanto, demorei algum tempo a conseguir fazer, em virtude da falta de hábito.” (pg.30)

deixei que ela me conduzisse até ao único quarto, me deitasse sobre a cama e me resguardasse com um cobertor” (pg.38)

As circunstâncias empurram-no e ele acomoda-se a elas, sem em nenhum momento desenhar sequer revolta (mesmo na relação com o filho, prefere a hipocrisia à ruptura: “não fui capaz de ir tão longe, não fui capaz de ser totalmente consequente,o que acabou por constituir a minha derrota” (pg. 94)).
O mais importante é a procura de um centro, de uma memória sólida que sirva de âncora à sua existência. Mas a memória traí, faz-se presente quando não deve, sobrepõe-se ao quotidiano, interfere. A memória não é matéria moldável: “e não sabia ainda que a memória é uma arca com muitas fendas, por onde não se cansa de expelir o que julgávamos arrumado em definitivo.” (pg.67). Apesar do desencanto, há a nostalgia de uma realidade sólida, unitária, estável (cf. Vattimo), uma nostalgia que “corre o risco de se transformar continuamente numa atitude neurótica, no esforço de reconstruir o mundo da nossa infância, onde as autoridades familiares eram ao mesmo tempo ameaçadoras e tranquilizadoras.” (Vattimo, 1992:14). Mas o passado também não é sólido.

Diz Bauman, na senda de Luhman que “para o indivíduo contemporâneo, o ego torna-se o lugar e o foco de toda a experiência interior, enquanto o ambiente, dividido em fragmentos com pouca conexão entre si, perde muito dos seus contornos e da sua autoridade definidora de significados” (pg. 105). Porém, nem entregue a si próprio o indivíduo tem a tarefa facilitada: “o eu é sobrecarregado com a tarefa impossível de reconstruir a identidade perdida do mundo; ou mais modestamente, com a tarefa de sustentar a produção da sua identidade” (106). Francisco tem muita dificuldade em encontrar o seu lugar: a cidade ideal não existe; a memória é um fantasma; o filho um “suplemento perturbador” (cf. Zizek); Paola não precisa dele. Tudo em Francisco é deslocamento e desconforto.
Talvez na sequência final de O Eclipse de Antonioni encontremos um eco justo do desolamento, da impossibilidade, da incapacidade, do desespero mudo que se abate sobre o protagonista de O Mundo Sólido.

Paula Cruz, Junho de 2009

BAUMAN, Zygmunt (trad. Mauro Gama) O Mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Bauman, Zygmunt, (trad. Marcos Penchel), Modernidade e ambivalência, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2007.
FERREIRA, Vergílio, Espaço do Invisível IV, Lisboa, Bertrand Editora, 1987.
FERREIRA, Vergílio, Invocação ao meu corpo, Lisboa, Bertrand Editora, 1994.
Vattimo, Gianni, (Trad. Hoissein Shooja), A sociedade transparente, , Lisboa, Relógio d' Água, 1992.
Zizek, Slavoj, As Metástases do Gozo - Seis Ensaios sobre a Mulher e a Causalidade, Lisboa, Relógio d' Água, 2006.