agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

sábado, 29 de agosto de 2009

c a s a | ADÍLIA LOPES

c a s a
por
ADÍLIA LOPES
Texto propositadamente escrito para a exposição e catálogo de desenhos de construção com casa . e céu de Carlos Nogueira.

«Casa» faz-me lembrar em primeiro lugar o Imperativo do verbo casar. Penso em Português. Imagino um pai tirano que aponta o dedo ao filho, estão pai e filho de fato completo escuro, e o pai manda:
– Casa!

É uma cena de palco velho com pó, que nada tem a ver com a casa atravessada pela luz de que fala o Carlos Nogueira.

A casa do Carlos Nogueira, para mim, é um espaço para rezar. Para pedir paciência e lágrimas. Porque podemos calcular as dimensões da mesa e da cadeira mas as recordações, as recordações do que foi e do que há-de ser, a angústia e a alegria, não as podemos prever, calcular.

Não me é possível falar das peças que vão estar na exposição sem ser sob a impressão muito forte do espaço em que as vi pela primeira vez: a casa do Carlos Nogueira.

Uma casa é só tecto e chão e o primeiro verso do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen intitulado «Electra»: «Os muros da casa dos Manon escorrem sangue».

Sempre a casa são os laços de sangue e a burocracia associada ao sangue: as partilhas e não a partilha. Que a casa seja o lugar da renúncia às coisas inúteis. A casa ideal para mim é uma casa despojada de coisas. Poucos livros, poucos móveis e muitos gatos.

As cores do Carlos Nogueira são boas cores: o branco e a noite. E a forma é o paralelepípedo.

À volta há árvores, perto está o comboio e o mar. Podemos escutar o silêncio e a luz. Penso numa igreja, penso em arte sacra. O Carlos Nogueira pensou a casa dele e pensou as peças para a exposição como pensou a casa. Enquanto dispunha no chão os blocos de ferro e madeira, ouvíamos no gira-discos Maria Callas. Eu lembrei-me da Medeia de Pasolini, em que Maria Callas permanece muda para dar um grito e só ouvimos a sua voz ao dar esse grito – que não é voz, é grito.

Aqui tudo é ordem, mesmo o caos tem leis e sabe-se quais são. Há leis. Eu nunca penso a casa. O Carlos Nogueira pensa a casa. Planeia. Arquitecta. Eu vivo instante a instante, como quem vai a cair por uma escarpa e se agarra a tufos de ervas para não cair tão abruptamente. Não premedito. E, se medito, é com aflição. Para mim, a casa é construída de dentro para fora. Vim ao mundo na casa e a casa era o mundo. O Carlos Nogueira raciocina como eu imagino que um construtor de catedrais raciocinou. Eu não sou assim.

Falo em catedrais, mas devia falar em conventos. Conventos com celas. Se soubesse Biologia, falava em células. A casa é o quarto, o quadrado, o rectângulo, o cubo, o paralelepípedo. Um ovo também é uma casa, basta pensar em Brancusi. Uma célula, uma cela.

A casa é uma fortaleza como o convento e a catedral. É um espaço de segurança. Mas o abismo está lá. Vive-se perto do abismo. Convive-se com o abismo.

E é preciso pagar a casa e o abismo. A electricidade e o curto-circuito e as infiltrações de água e o incêndio e o seguro e a insegurança.

O que penso sobre estas peças que o Carlos Nogueira quer mostrar, e que tenho tentado fixar aqui por escrito, reduz-se ao título de um poema de Fernando Pessoa «A casa branca nau preta» e aos últimos versos do poema cujo título é esse: «A casa branca nau preta…/ Felicidade na Austrália…». Penso em Português e penso em versos.

A esgrouviada Marianna Alcoforado, a despassarada Marianna Alcoforado, melhor será dizer a apaixonada Marianna Alcoforado, que ama perdidamente como a Florbela Espanca dos sonetos, ia sentir-se bem nesta cela, nesta casa do Carlos Nogueira. Charneca em flor, charneca em fogo e um chão de ladrilhos pretos e brancos como um tabuleiro de xadrez. Deve ser bom ser inteligente e jogar xadrez aqui e tocar cravo e estudar Mecânica Clássica.

A janela devia ter grades como a do Convento de Beja de que os turistas japoneses tanto gostam.

A freira raciocina e apaixona-se. Não há calma nisto. Mas sem paciência não há ciência.

A casa é um espaço para rezar. Para pedir paciência, cinzas e lágrimas. Não há nisto luxo nem volúpia. E não digo sequer que haja beleza.

Na minha biblioteca baralhada, não encontro os poemas de Baudelaire. E estive a citar de cor um poema de Baudelaire, julgo que foi «O convite à viagem».

Da casa do Carlos Nogueira afinal nada sei, mas gostava de acabar de arrumar a minha casa. A minha casa é o convite a ficar, é o convite a não viajar. In Carlos Nogueira, desenhos de construção com casa . e céu, Almada, Casa da Cerca - CAC, Maio 2006, p. 48-53.

Sem comentários: