Ana Luísa Amaral: uma estratégia do avesso
Ao décimo livro, Ana Luísa Amaral, cala a sua voz, aquela voz que habitualmente tematiza e dessacraliza o quotidiano doméstico, para dar voz às musas emudecidas pelo peso da tradição. Neste sentido, A Génese do Amor é uma obra diferente daquela a que a poeta vinha tinha habituado, ou nem tanto assim. A verdade é que A Arte de Ser Tigre (Amaral,2003) já anunciava um outro modo de estar na coisa poética.
Nos livros passados, nomeadamente, no inaugural Minha Senhora de Quê (Amaral, 1990), encontramos uma retórica de autenticidade, onde os leitores são transformados numa espécie de voyeurs autorizados. Desde esse primeiro momento, a poesia assume-se como um lugar de suspensão, no qual o sujeito de enunciação vai procurando coincidir consigo mesmo. Essa voz que emana do poema e que a espaços mais ou menos regulares coincide com a própria Ana Luísa Amaral, apropria-se progressivamente do mundo: «As outras dividiam-se / por sótãos, / eu movo-me em despensa / com presunto e arroz, /livros e detergentes» (Amaral, 1999: 41). O desejo agora é que se faça luz: «que a luz penetre / no meu sótão/ mental/ do espaço curto» (idem, ibidem: 31). Depois da apropriação de um certo capital cultural legitimado socialmente, é necessário que o sujeito feminino também se emancipe mentalmente: «queria um tempo/ só meu: revisitado» (idem, 1998:33). A mudança já não passa (só) por conquistas de direitos de cidadania, mas por uma metamorfose operada no interior do próprio sujeito. Não são os espaços que operam as mudanças: «e pensei que afinal não interessa Londres ou nós, / que em toda a parte / as mesmas coisas são» (idem, 2001:64). A construção desta identidade obriga à construção de uma gramática na primeira pessoa: «Sou só eu lonely me / só quero um chá/ mais nada/ e mais ninguém» (idem, 1999: 45). Contudo os versos nascem-lhe urgentes, com «trabalhos de permeio refeições / doendo a consciência inusitada» (idem, ibidem: 69).
A dessacralização do acto intelectual é constante: o quotidiano não se compadece com lirismos. Um pequeno incidente doméstico é disto exemplo. Entre escrever sobre uma tigela partida na cozinha e varrer a cozinha, o acto doméstico sobrepõe-se ao acto intelectual. Aquela tigela quebrada, matéria apetecível para um poema, e quiçá motivo de estudo «num futuro remoto» (idem, ibidem: 46) foi removida por uma necessidade primeira: limpar a cozinha. O divino é substituído pelo profano. O encanto poético é quebrado pela urgência do real, representado aqui «por um mísero balde de lixo/ azul em plástico moderno/ (indestrutível)» (idem, ibidem: 47).
Curioso é o diálogo intratextual que em Imagias (idem, 2002) se estabelece com esse poema: «A minha filha já não parte tigelas, / nem desmancha brinquedos como dantes. / E onde vou arranjar agora o verso / sem tempos de brinquedos» (idem, ibidem: 25). Como se agora, uma rotina doméstica diferente, mais aligeirada, deixasse mais espaço para uma poesia que de um outro fôlego, ou ainda, como se o que serviu de base para a matéria poética, agora perdesse razão de ser. Voltando aos vários papéis femininos – à mãe e à poeta – veja-se também aqui a interpenetração de planos num texto de Às Vezes o Paraíso (idem, 1998) «De mansinho ela entrou, a minha filha.// A madrugada entrava como ela, mas não / tão de mansinho (…) / /Sentou-se no meu colo, de mansinho. / / O poema invadia como ela, mas não / tão mansamente, não com esta exigência/ tão mansinha. Como um ladrão furtivo, / a minha filha roubou-me a inspiração, / versos quase chegados, quase meus. // E mansamente aqui adormeceu, feliz pelo seu crime.” (idem, 1998: 40). Mas não é só a filha ou as urgências domésticas que invadem o poema, às vezes, a interrupção é procurada: «Interrompi os versos por laranjas. / E volto sempre a ti mesmo que não. / É estranho que pacíficas laranjas / não me consigam afastar de ti» (idem, 2001: 11).
A reflexão metapoética não está nunca distante de Ana Luísa Amaral, amiúde comparecem referências que denotam plena consciência dos processos e dos saberes teoréticos: «Note bem: a criatura / é céptica e tem um gosto péssimo, / mas veja-se outros textos que redimem / em sério o que aqui se diz. Cf. Por ex. / o que quiser, mas deixe a criatura / regalar-se por se pensar – coitada - / incómoda e sonora» (idem, 1999: 51) ou «Finalmente curei-me. Isso nota-se até / na tentativa (quase) de adjectivos ausente. É pena os advérbios» (idem, ibidem: 13) ou «vejo-me em prognóstico a escrever o futuro / sem dependência da morfina adverbial» (idem, ibidem: 13), entre muitos outros exemplos. Interessante é a forma como esse saber se mistura com as rotinas domésticas, como em «Intertextualidades» (idem, 1999:24) onde uma migalha «microscópica quase» (idem, ibidem: 24) surge entre as folhas de um livro. Uma vez mais, o quotidiano invade o intelectual. O processo de exegese é quebrado por um evento prosaico: uma migalha de pão que algum leitor anterior deixou no meio do livro: «No mistério mais essencial, / ela surgiu-me recatadamente / a meio de dois parágrafos solenes» (idem, ibidem: 24). Um bem cultural é misturado com uma simples migalha de pão. O ler – plano intelectual – e o comer – plano biológico – são postos num mesmo nível de entendimento. E o sujeito entra neste processo: «fiquei com a migalha, / desconhecida oferta do leitor» (idem, ibidem: 25), mas “por jogo ou por consumo” abandona, também não uma «marca de água» (idem, ibidem: 25), mas uma outra migalha de pão. Em vez de deixar no livro algo reconhecido (e valorizado) socialmente, prefere abandonar uma migalha, de forma a provocar (novas) cogitações em outras futuras leituras.
A voz que fala nos textos de Ana Luísa Amaral é a voz de uma mulher que tem o que escolheu ter: uma vida profissional e uma vida doméstica, atropelando-se estes dois mundos na produção lírica. Esta voz procura agora algo que a complete, que lhe dê sentido. O sujeito de enunciação sabe que algo lhe falta, simplesmente não consegue materializar essa questão «Realmente não tenho / O quê não sei / Mas não tenho» (idem, ibidem:70). Mas, antes que seja mal interpretada – e aqui revela-se a consciência das leituras possíveis que o leitor pode fazer e do facto de o leitor não ser nunca um receptáculo passivo - , apressa-se a explicar que o que lhe falta não é como diria Freud um falo. O que lhe falta é o “quase” de Sá-Carneiro.
Em a Génese do Amor não são as epifanias quotidianas que animam o verso. Aqui, ao mesmo tempo que se promove uma releitura do passado, procura-se resgatar vozes caladas durante séculos. Este é um tema caro a Ana Luísa Amaral, já em Coisas de Partir (Amaral, 2001) as «reais ausências» são abordadas: «Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião» (idem, ibidem: 61) e «Não há rainhas, não. / Até a Vitória, na forma de mandar, / foi mais que homem: manias do império» (idem, ibidem: 62).
A propósito deste último livro, Mexia considera que «embora A Génese do Amor não seja poeticamente muito estimulante, tem o indiscutível mérito de introduzir nesta temática uma perspectiva feminina e mesmo feminista.» (Mexia, 2005), concordo ao avesso, que é como quem diz: discordo, pois além de considerar bastante estimulante a revisitação intertextual do cânone amoroso estético cultural ocidental, a verdade é que, e Ana Luísa Amaral sabe-o, a perspectiva feminina (e mesmo feminista) havia já sido introduzida por outros que não ela. Ela, e bem, continuou essa tradição de resgate das vozes que foram condenadas a ser apenas mudas musas. Com A Génese do Amor (Amaral, 2005), a poeta inscreve-se numa linhagem feminina que bem conhece, laborando numa tradição que vem de Elizabeth Barrett Browning (1806-1861), Christina Rossetti (1830-1894) e (sempre) Emily Dickinson (1830-1886).
Comecemos pela ordem cronológica, Elisabeth Barret Browning, autora dos Sonetos Portugueses, tem um longo poema, traduzido por Pessoa, intitulado «Catarina a Camões». Talvez seja aqui a primeira vez que a musa, Catarina de Ataíde, celebrada nos versos sob o anagrama de Natércia, se dirige ao poeta. No leito da morte, Catarina chama pelo poeta para este «fechar bem / Estes olhos de que dissestes ao vê-los:/ O lindo ser dos vossos olhos belos». Porventura será esta a explicação para que em nenhum dos textos que povoam A Génese do Amor, Catarina interpele, directamente, Camões, é sempre Natércia quem o faz.
Ana Luísa Amaral não faz gala na «temática original» a que se refere Mexia, prefere reiterar as suas antecessoras e continuar no mesmo bastidor. Elisabeth Barrett, mais tarde Browning, por casamento com o poeta Robert Browning, é o nome mais alto da poesia inglesa vitoriana. Numa época de austeridade, tornou-se a poeta do amor por excelência, legando aos vindouros alguns dos mais belos sonetos escritos em língua inglesa. Os Sonetos Portugueses reflectem todo o alvoroço da sua paixão por Robert, as incertezas, as dúvida e a felicidade que esse amor lhe trouxe. Dado o carácter tão pessoal da obra, Elisabeth não desejava publicar estes sonetos, mas Robert persuadiu-a e sugeriu-lhe um título que indiciasse que os poemas eram simples traduções do português... A primeira edição é de 1847 e é anónima, só após a sua morte os poemas foram publicados com o seu nome.
Também Christina Rossetti dá, em «Monna Innominata», voz a musas sem voz: são elas quem diz de si, não esperando que sejam eles – os vates – a nomeá-las e a glorificá-las. Os sentimentos que cantam são os delas e não os que eles vêem nelas. A introdução de Christina Rossetti aos sonetos «Monna Innominata» é esclarecedora: «Tanto Beatriz, imortalizada pelo «altíssimo poeta… cotando amante», como Laura celebrada por um grande bardo ainda que inferior, cumpriram igualmente o excepcional castigo de excepcionais homenagens e chegaram até nós resplandecentes de encantos, mas (pelo menos, no meu entender) com poucos atractivos. Estas heroínas mundialmente famosas foram precedidas por uma hoste de damas não nomeadas, «donne innominate» cantadas por uma escola de poetas menos conspícuos» (Rossetti, 2001: 145). E continua, agora aludindo a Elisabeth Barret Browning: «se uma das damas tivesse falado por si, talvez o retrato que nos deixasse fosse mais terno, se bem que menos digno, do que qualquer dos traçados por um amigo dedicado. Ou se a Grande Poetisa da nossa nação e nosso tempo tivesse apenas sido infeliz, em vez de feliz, talvez as circunstâncias a incitassem a legar-nos, em lugar dos Portuguese Sonnets, uma inimitável «donna innominata» que não fosse retratada a partir da fantasia mas do sentimento, e digna de ocupar um nicho ao lado de Beatriz e Laura» (idem, ibidem: 145). O elogio de Rossetti a Elisabeth B. Browning é significativo: não tivesse ela tido a ousadia (ainda que anónima…) de falar dos seus sentimentos em primeira pessoa e de si apenas saberíamos por Robert. Num soneto diz Rossetti, assumindo-se como uma dessas musas emudecidas: «Dirão de ti as gentes do porvir: / - Amou-a! – enquanto de mim, ufanas, / Hão-de dizer que te amei a fingir / como fazem as mulheres levianas» (idem, ibidem: 151). Depois deste longo excurso, creio que os textos de A Génese do Amor ficam devidamente ancorados numa firme linhagem de vozes que dão voz.
Laura, Beatriz e Catarina/Natércia surgem como símbolos amordaçados das musas que alimentaram os poetas, mas que não puderam nunca dizer de si. De Beatriz apenas sabemos o que Dante louvou no seu caminho das trevas para a luz, colocando-a no mais alto grau de pureza: a ligação entre o divino e o humano. Laura é a representação de mulher que vive na memória de Petrarca: Laura vive enquanto a sua lembrança consome o poeta. Beatriz e Laura transformam-se em abstracções incorpóreas. Camões, seguindo de perto o modelo petrarquiano, recria um amor que vive na impossibilidade de conciliar corpo e espírito.
Regressando ao livro de Ana Luísa Amaral, aí, o que menos importa é determinar rigorosamente quem fala: Natércia? Catarina? Beatriz? Laura? Dante? Petrarca? Camões?. O que sobressaí é a importância de cruzar olhares, quando sabemos que “cruzar olhares é fácil, mas não trocar de olhar” (idem, 2003:39). O jogo especular é uma metáfora operacional neste livro. O jogo de luzes, os espelhos, os brilhos sempre presentes na p.oética de Ana Luísa Amaral, surge em A Génese do Amor sob uma encenação dialogística. No primeiro poema – topografias em quase dicionário revela-se já o carácter dialogante que preside ao livro. Atente-se a este poema que fornece algumas chaves que auxiliam o leitor num processo de “reaprender o mundo / em prisma novo” (idem, 2005:9), acrescentamos nós um prisma feminino.
Os poemas que constituem a Génese do Amor funcionam como um estado de suspensão temporal e geográfica, que autoriza as vozes das musas e as vozes dos seus mestres a um breve trocar de impressões. É desta (e nesta) suspensão de tempos, que se encontra uma aproximação ao amor (ou à sua génese). Quando «Camões fala a Petrarca» (Amaral, 2005:9), insere-se numa mesma linhagem amorosa que difere apenas na língua e nos “ofícios mais difíceis / de viver”. (idem, ibidem: 9). Ambos são cultores de um mesmo estilo amoroso: um doce estilo novo. Depois o diálogo entre Camões e a sua “branda musa” (idem, ibidem:25), Natércia.
A tensão entre a mulher deusa – a musa, a senhor – e a mulher real (ainda que inventada) é evidente. Natércia reclama um estatuto de mulher desejada e que também deseja: o poeta recua. Natércia pede: “não fales de mim: fala comigo” (idem, ibidem:33). Natércia/Catarina reclamam a coincidência entre o objecto do desejo e a consumação desse mesmo desejo. Também a fala de Beatriz a Dante (idem, ibidem: 29) denota a tensão sexual: “viva/ no teu desejo / não anseio por morrer:/ morrendo no teu desejo / desejo, em carne, / viver” (idem, ibidem: 29). Beatriz não quer viver no eterno desejo de Dante, deseja em carne viver. Cansou-se do papel mudo e passivo a que foi remetida. A questão do papel da mulher é revisto e actualizado: a mulher deixa o pedestal em que foi colocada (e enclausurada) e passa a ter uma voz e um corpo: de criatura a criadora. Reclama junto daquele que lhe roubou “o verso / e a palavra” (idem, ibidem:50). Como num jogo de espelhos, também Natércia se aproxima de Laura, e a “branda musa” camoniana mostra o constrangimento da “feroz tradição” de ser o alvo e não a seta: “de não ser voz / mas antes coisa amada” (idem, ibidem:45). Enquanto eles – os poetas – fazem da vida em verso, uma vida maior que a outra vida – elas têm o destino comum de ser nada: “- Sendo, no verso, feminina gente” (idem, ibidem: 46).
Ana Luísa Amaral promove a subversão da norma, agora são elas que lhes dão visibilidade a eles: «Nestes versos /te mantenho, /neles /te faço viver //E para sempre serás, /mesmo se em carne /morreres» (idem, ibidem: 30), diz Beatriz a Dante.
O poema que dá título ao livro procura – sem glória – o momento genesíaco do amor: «Talvez um intervalo cósmico / a povoar, sem querer, a vida: / talvez quasar que a inundou de luz/ retransformou em matéria tão densa/ que a cindiu, / a reteve, suspensa, pelo espaço» (idem, ibidem: 59). A sugestão dos quasares, objectos quase estelares de extrema luminosidade encontrados nos confins do Universo, remete-nos para um espaço infinito de possibilidades, de «imagens como abóbadas de céu» (idem, ibidem: 59). A Génese do Amor é uma aproximação ao amor, não mais, nem menos que isso. Ana Luísa Amaral sabe que apenas a literatura preserva, no verso, as «paisagens de dentro» (idem, ibidem:11), mas essas paisagens foram, quase sempre, feitas à imagem de uma voz masculina, daí, estratégia palimpséstica, arqueológica de procurar outras vozes: «Talvez assim tivesse algum /sentido / a génese do amor» (idem, ibidem: 61).
Bibliografia:
Amaral, Ana Luísa
(1990) Minha senhora de Quê (ed. utilizada, Quetzal, ed. Lisboa, 1999).
(1993) Coisas de Partir, Coimbra, Fora do Texto.
(1994) Epopeias, Coimbra, Fora do Texto.
(1995) E Muitos os Caminhos, Porto, Poetas de Letras, Porto.
(1998) Às vezes o Paraíso, Lisboa, Quetzal Editores.
(2000) Imagens, Campo das Letras, Porto.
(2002) Imagias, Gótica, Lisboa.
(2003) A arte de ser tigre, Gótica, Lisboa.
(2005) A génese do Amor, Campo das Letras, Porto.
Browning, Elizabeth Barrett (1991) Sonetos Portugueses (trad. Manuel Corrêa de Barros), Relógio d’Água, Lisboa.
Rossetti, Christina (2001), Mercado dos Duendes e outros poemas (trad. Margarida Vale de Gato), Relógio d’Água, Lisboa.
Mexia, P. (2005, 20 de Maio). «Sendo no verso feminina gente», Diário de Notícias.
Notas:
i Num outro espaço, creio que seria deveras interessante, acompanhar a forma como a «filha» de Ana Luísa Amaral cresce em seus poemas.
ii O gosto pelos brilhos, pelos reflexos está presente em toda a obra de Ana Luísa Amaral: «tecto desigual, reflectindo nada» (1998, 22), «poeira de diamante» (idem, ibidem, 25); «fulgir de estrela» (idem, ibidem: 83); «metáfora de brilho» (idem, 2001: 42); «bola de cristal feita de espelhos» (idem, ibidem: 43); «luas ou marés / brilha e reflui» (idem, ibidem: 66); «olho-te pelo reflexo / do vidro» (idem, ibidem: 80) , estes são alguns dos muitos exemplos que poderiam ser dados.
iii Não posso deixar de me referir à frequência com que em Ana Luísa Amaral surgem as abóbadas, os tectos, as varandas, os claustros , as janelas como forma de limite. Estas barreiras arquitectónicas merecem uma leitura atenta, a que voltaremos.
Ao décimo livro, Ana Luísa Amaral, cala a sua voz, aquela voz que habitualmente tematiza e dessacraliza o quotidiano doméstico, para dar voz às musas emudecidas pelo peso da tradição. Neste sentido, A Génese do Amor é uma obra diferente daquela a que a poeta vinha tinha habituado, ou nem tanto assim. A verdade é que A Arte de Ser Tigre (Amaral,2003) já anunciava um outro modo de estar na coisa poética.
Nos livros passados, nomeadamente, no inaugural Minha Senhora de Quê (Amaral, 1990), encontramos uma retórica de autenticidade, onde os leitores são transformados numa espécie de voyeurs autorizados. Desde esse primeiro momento, a poesia assume-se como um lugar de suspensão, no qual o sujeito de enunciação vai procurando coincidir consigo mesmo. Essa voz que emana do poema e que a espaços mais ou menos regulares coincide com a própria Ana Luísa Amaral, apropria-se progressivamente do mundo: «As outras dividiam-se / por sótãos, / eu movo-me em despensa / com presunto e arroz, /livros e detergentes» (Amaral, 1999: 41). O desejo agora é que se faça luz: «que a luz penetre / no meu sótão/ mental/ do espaço curto» (idem, ibidem: 31). Depois da apropriação de um certo capital cultural legitimado socialmente, é necessário que o sujeito feminino também se emancipe mentalmente: «queria um tempo/ só meu: revisitado» (idem, 1998:33). A mudança já não passa (só) por conquistas de direitos de cidadania, mas por uma metamorfose operada no interior do próprio sujeito. Não são os espaços que operam as mudanças: «e pensei que afinal não interessa Londres ou nós, / que em toda a parte / as mesmas coisas são» (idem, 2001:64). A construção desta identidade obriga à construção de uma gramática na primeira pessoa: «Sou só eu lonely me / só quero um chá/ mais nada/ e mais ninguém» (idem, 1999: 45). Contudo os versos nascem-lhe urgentes, com «trabalhos de permeio refeições / doendo a consciência inusitada» (idem, ibidem: 69).
A dessacralização do acto intelectual é constante: o quotidiano não se compadece com lirismos. Um pequeno incidente doméstico é disto exemplo. Entre escrever sobre uma tigela partida na cozinha e varrer a cozinha, o acto doméstico sobrepõe-se ao acto intelectual. Aquela tigela quebrada, matéria apetecível para um poema, e quiçá motivo de estudo «num futuro remoto» (idem, ibidem: 46) foi removida por uma necessidade primeira: limpar a cozinha. O divino é substituído pelo profano. O encanto poético é quebrado pela urgência do real, representado aqui «por um mísero balde de lixo/ azul em plástico moderno/ (indestrutível)» (idem, ibidem: 47).
Curioso é o diálogo intratextual que em Imagias (idem, 2002) se estabelece com esse poema: «A minha filha já não parte tigelas, / nem desmancha brinquedos como dantes. / E onde vou arranjar agora o verso / sem tempos de brinquedos» (idem, ibidem: 25). Como se agora, uma rotina doméstica diferente, mais aligeirada, deixasse mais espaço para uma poesia que de um outro fôlego, ou ainda, como se o que serviu de base para a matéria poética, agora perdesse razão de ser. Voltando aos vários papéis femininos – à mãe e à poeta – veja-se também aqui a interpenetração de planos num texto de Às Vezes o Paraíso (idem, 1998) «De mansinho ela entrou, a minha filha.// A madrugada entrava como ela, mas não / tão de mansinho (…) / /Sentou-se no meu colo, de mansinho. / / O poema invadia como ela, mas não / tão mansamente, não com esta exigência/ tão mansinha. Como um ladrão furtivo, / a minha filha roubou-me a inspiração, / versos quase chegados, quase meus. // E mansamente aqui adormeceu, feliz pelo seu crime.” (idem, 1998: 40). Mas não é só a filha ou as urgências domésticas que invadem o poema, às vezes, a interrupção é procurada: «Interrompi os versos por laranjas. / E volto sempre a ti mesmo que não. / É estranho que pacíficas laranjas / não me consigam afastar de ti» (idem, 2001: 11).
A reflexão metapoética não está nunca distante de Ana Luísa Amaral, amiúde comparecem referências que denotam plena consciência dos processos e dos saberes teoréticos: «Note bem: a criatura / é céptica e tem um gosto péssimo, / mas veja-se outros textos que redimem / em sério o que aqui se diz. Cf. Por ex. / o que quiser, mas deixe a criatura / regalar-se por se pensar – coitada - / incómoda e sonora» (idem, 1999: 51) ou «Finalmente curei-me. Isso nota-se até / na tentativa (quase) de adjectivos ausente. É pena os advérbios» (idem, ibidem: 13) ou «vejo-me em prognóstico a escrever o futuro / sem dependência da morfina adverbial» (idem, ibidem: 13), entre muitos outros exemplos. Interessante é a forma como esse saber se mistura com as rotinas domésticas, como em «Intertextualidades» (idem, 1999:24) onde uma migalha «microscópica quase» (idem, ibidem: 24) surge entre as folhas de um livro. Uma vez mais, o quotidiano invade o intelectual. O processo de exegese é quebrado por um evento prosaico: uma migalha de pão que algum leitor anterior deixou no meio do livro: «No mistério mais essencial, / ela surgiu-me recatadamente / a meio de dois parágrafos solenes» (idem, ibidem: 24). Um bem cultural é misturado com uma simples migalha de pão. O ler – plano intelectual – e o comer – plano biológico – são postos num mesmo nível de entendimento. E o sujeito entra neste processo: «fiquei com a migalha, / desconhecida oferta do leitor» (idem, ibidem: 25), mas “por jogo ou por consumo” abandona, também não uma «marca de água» (idem, ibidem: 25), mas uma outra migalha de pão. Em vez de deixar no livro algo reconhecido (e valorizado) socialmente, prefere abandonar uma migalha, de forma a provocar (novas) cogitações em outras futuras leituras.
A voz que fala nos textos de Ana Luísa Amaral é a voz de uma mulher que tem o que escolheu ter: uma vida profissional e uma vida doméstica, atropelando-se estes dois mundos na produção lírica. Esta voz procura agora algo que a complete, que lhe dê sentido. O sujeito de enunciação sabe que algo lhe falta, simplesmente não consegue materializar essa questão «Realmente não tenho / O quê não sei / Mas não tenho» (idem, ibidem:70). Mas, antes que seja mal interpretada – e aqui revela-se a consciência das leituras possíveis que o leitor pode fazer e do facto de o leitor não ser nunca um receptáculo passivo - , apressa-se a explicar que o que lhe falta não é como diria Freud um falo. O que lhe falta é o “quase” de Sá-Carneiro.
Em a Génese do Amor não são as epifanias quotidianas que animam o verso. Aqui, ao mesmo tempo que se promove uma releitura do passado, procura-se resgatar vozes caladas durante séculos. Este é um tema caro a Ana Luísa Amaral, já em Coisas de Partir (Amaral, 2001) as «reais ausências» são abordadas: «Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião» (idem, ibidem: 61) e «Não há rainhas, não. / Até a Vitória, na forma de mandar, / foi mais que homem: manias do império» (idem, ibidem: 62).
A propósito deste último livro, Mexia considera que «embora A Génese do Amor não seja poeticamente muito estimulante, tem o indiscutível mérito de introduzir nesta temática uma perspectiva feminina e mesmo feminista.» (Mexia, 2005), concordo ao avesso, que é como quem diz: discordo, pois além de considerar bastante estimulante a revisitação intertextual do cânone amoroso estético cultural ocidental, a verdade é que, e Ana Luísa Amaral sabe-o, a perspectiva feminina (e mesmo feminista) havia já sido introduzida por outros que não ela. Ela, e bem, continuou essa tradição de resgate das vozes que foram condenadas a ser apenas mudas musas. Com A Génese do Amor (Amaral, 2005), a poeta inscreve-se numa linhagem feminina que bem conhece, laborando numa tradição que vem de Elizabeth Barrett Browning (1806-1861), Christina Rossetti (1830-1894) e (sempre) Emily Dickinson (1830-1886).
Comecemos pela ordem cronológica, Elisabeth Barret Browning, autora dos Sonetos Portugueses, tem um longo poema, traduzido por Pessoa, intitulado «Catarina a Camões». Talvez seja aqui a primeira vez que a musa, Catarina de Ataíde, celebrada nos versos sob o anagrama de Natércia, se dirige ao poeta. No leito da morte, Catarina chama pelo poeta para este «fechar bem / Estes olhos de que dissestes ao vê-los:/ O lindo ser dos vossos olhos belos». Porventura será esta a explicação para que em nenhum dos textos que povoam A Génese do Amor, Catarina interpele, directamente, Camões, é sempre Natércia quem o faz.
Ana Luísa Amaral não faz gala na «temática original» a que se refere Mexia, prefere reiterar as suas antecessoras e continuar no mesmo bastidor. Elisabeth Barrett, mais tarde Browning, por casamento com o poeta Robert Browning, é o nome mais alto da poesia inglesa vitoriana. Numa época de austeridade, tornou-se a poeta do amor por excelência, legando aos vindouros alguns dos mais belos sonetos escritos em língua inglesa. Os Sonetos Portugueses reflectem todo o alvoroço da sua paixão por Robert, as incertezas, as dúvida e a felicidade que esse amor lhe trouxe. Dado o carácter tão pessoal da obra, Elisabeth não desejava publicar estes sonetos, mas Robert persuadiu-a e sugeriu-lhe um título que indiciasse que os poemas eram simples traduções do português... A primeira edição é de 1847 e é anónima, só após a sua morte os poemas foram publicados com o seu nome.
Também Christina Rossetti dá, em «Monna Innominata», voz a musas sem voz: são elas quem diz de si, não esperando que sejam eles – os vates – a nomeá-las e a glorificá-las. Os sentimentos que cantam são os delas e não os que eles vêem nelas. A introdução de Christina Rossetti aos sonetos «Monna Innominata» é esclarecedora: «Tanto Beatriz, imortalizada pelo «altíssimo poeta… cotando amante», como Laura celebrada por um grande bardo ainda que inferior, cumpriram igualmente o excepcional castigo de excepcionais homenagens e chegaram até nós resplandecentes de encantos, mas (pelo menos, no meu entender) com poucos atractivos. Estas heroínas mundialmente famosas foram precedidas por uma hoste de damas não nomeadas, «donne innominate» cantadas por uma escola de poetas menos conspícuos» (Rossetti, 2001: 145). E continua, agora aludindo a Elisabeth Barret Browning: «se uma das damas tivesse falado por si, talvez o retrato que nos deixasse fosse mais terno, se bem que menos digno, do que qualquer dos traçados por um amigo dedicado. Ou se a Grande Poetisa da nossa nação e nosso tempo tivesse apenas sido infeliz, em vez de feliz, talvez as circunstâncias a incitassem a legar-nos, em lugar dos Portuguese Sonnets, uma inimitável «donna innominata» que não fosse retratada a partir da fantasia mas do sentimento, e digna de ocupar um nicho ao lado de Beatriz e Laura» (idem, ibidem: 145). O elogio de Rossetti a Elisabeth B. Browning é significativo: não tivesse ela tido a ousadia (ainda que anónima…) de falar dos seus sentimentos em primeira pessoa e de si apenas saberíamos por Robert. Num soneto diz Rossetti, assumindo-se como uma dessas musas emudecidas: «Dirão de ti as gentes do porvir: / - Amou-a! – enquanto de mim, ufanas, / Hão-de dizer que te amei a fingir / como fazem as mulheres levianas» (idem, ibidem: 151). Depois deste longo excurso, creio que os textos de A Génese do Amor ficam devidamente ancorados numa firme linhagem de vozes que dão voz.
Laura, Beatriz e Catarina/Natércia surgem como símbolos amordaçados das musas que alimentaram os poetas, mas que não puderam nunca dizer de si. De Beatriz apenas sabemos o que Dante louvou no seu caminho das trevas para a luz, colocando-a no mais alto grau de pureza: a ligação entre o divino e o humano. Laura é a representação de mulher que vive na memória de Petrarca: Laura vive enquanto a sua lembrança consome o poeta. Beatriz e Laura transformam-se em abstracções incorpóreas. Camões, seguindo de perto o modelo petrarquiano, recria um amor que vive na impossibilidade de conciliar corpo e espírito.
Regressando ao livro de Ana Luísa Amaral, aí, o que menos importa é determinar rigorosamente quem fala: Natércia? Catarina? Beatriz? Laura? Dante? Petrarca? Camões?. O que sobressaí é a importância de cruzar olhares, quando sabemos que “cruzar olhares é fácil, mas não trocar de olhar” (idem, 2003:39). O jogo especular é uma metáfora operacional neste livro. O jogo de luzes, os espelhos, os brilhos sempre presentes na p.oética de Ana Luísa Amaral, surge em A Génese do Amor sob uma encenação dialogística. No primeiro poema – topografias em quase dicionário revela-se já o carácter dialogante que preside ao livro. Atente-se a este poema que fornece algumas chaves que auxiliam o leitor num processo de “reaprender o mundo / em prisma novo” (idem, 2005:9), acrescentamos nós um prisma feminino.
Os poemas que constituem a Génese do Amor funcionam como um estado de suspensão temporal e geográfica, que autoriza as vozes das musas e as vozes dos seus mestres a um breve trocar de impressões. É desta (e nesta) suspensão de tempos, que se encontra uma aproximação ao amor (ou à sua génese). Quando «Camões fala a Petrarca» (Amaral, 2005:9), insere-se numa mesma linhagem amorosa que difere apenas na língua e nos “ofícios mais difíceis / de viver”. (idem, ibidem: 9). Ambos são cultores de um mesmo estilo amoroso: um doce estilo novo. Depois o diálogo entre Camões e a sua “branda musa” (idem, ibidem:25), Natércia.
A tensão entre a mulher deusa – a musa, a senhor – e a mulher real (ainda que inventada) é evidente. Natércia reclama um estatuto de mulher desejada e que também deseja: o poeta recua. Natércia pede: “não fales de mim: fala comigo” (idem, ibidem:33). Natércia/Catarina reclamam a coincidência entre o objecto do desejo e a consumação desse mesmo desejo. Também a fala de Beatriz a Dante (idem, ibidem: 29) denota a tensão sexual: “viva/ no teu desejo / não anseio por morrer:/ morrendo no teu desejo / desejo, em carne, / viver” (idem, ibidem: 29). Beatriz não quer viver no eterno desejo de Dante, deseja em carne viver. Cansou-se do papel mudo e passivo a que foi remetida. A questão do papel da mulher é revisto e actualizado: a mulher deixa o pedestal em que foi colocada (e enclausurada) e passa a ter uma voz e um corpo: de criatura a criadora. Reclama junto daquele que lhe roubou “o verso / e a palavra” (idem, ibidem:50). Como num jogo de espelhos, também Natércia se aproxima de Laura, e a “branda musa” camoniana mostra o constrangimento da “feroz tradição” de ser o alvo e não a seta: “de não ser voz / mas antes coisa amada” (idem, ibidem:45). Enquanto eles – os poetas – fazem da vida em verso, uma vida maior que a outra vida – elas têm o destino comum de ser nada: “- Sendo, no verso, feminina gente” (idem, ibidem: 46).
Ana Luísa Amaral promove a subversão da norma, agora são elas que lhes dão visibilidade a eles: «Nestes versos /te mantenho, /neles /te faço viver //E para sempre serás, /mesmo se em carne /morreres» (idem, ibidem: 30), diz Beatriz a Dante.
O poema que dá título ao livro procura – sem glória – o momento genesíaco do amor: «Talvez um intervalo cósmico / a povoar, sem querer, a vida: / talvez quasar que a inundou de luz/ retransformou em matéria tão densa/ que a cindiu, / a reteve, suspensa, pelo espaço» (idem, ibidem: 59). A sugestão dos quasares, objectos quase estelares de extrema luminosidade encontrados nos confins do Universo, remete-nos para um espaço infinito de possibilidades, de «imagens como abóbadas de céu» (idem, ibidem: 59). A Génese do Amor é uma aproximação ao amor, não mais, nem menos que isso. Ana Luísa Amaral sabe que apenas a literatura preserva, no verso, as «paisagens de dentro» (idem, ibidem:11), mas essas paisagens foram, quase sempre, feitas à imagem de uma voz masculina, daí, estratégia palimpséstica, arqueológica de procurar outras vozes: «Talvez assim tivesse algum /sentido / a génese do amor» (idem, ibidem: 61).
Bibliografia:
Amaral, Ana Luísa
(1990) Minha senhora de Quê (ed. utilizada, Quetzal, ed. Lisboa, 1999).
(1993) Coisas de Partir, Coimbra, Fora do Texto.
(1994) Epopeias, Coimbra, Fora do Texto.
(1995) E Muitos os Caminhos, Porto, Poetas de Letras, Porto.
(1998) Às vezes o Paraíso, Lisboa, Quetzal Editores.
(2000) Imagens, Campo das Letras, Porto.
(2002) Imagias, Gótica, Lisboa.
(2003) A arte de ser tigre, Gótica, Lisboa.
(2005) A génese do Amor, Campo das Letras, Porto.
Browning, Elizabeth Barrett (1991) Sonetos Portugueses (trad. Manuel Corrêa de Barros), Relógio d’Água, Lisboa.
Rossetti, Christina (2001), Mercado dos Duendes e outros poemas (trad. Margarida Vale de Gato), Relógio d’Água, Lisboa.
Mexia, P. (2005, 20 de Maio). «Sendo no verso feminina gente», Diário de Notícias.
Notas:
i Num outro espaço, creio que seria deveras interessante, acompanhar a forma como a «filha» de Ana Luísa Amaral cresce em seus poemas.
ii O gosto pelos brilhos, pelos reflexos está presente em toda a obra de Ana Luísa Amaral: «tecto desigual, reflectindo nada» (1998, 22), «poeira de diamante» (idem, ibidem, 25); «fulgir de estrela» (idem, ibidem: 83); «metáfora de brilho» (idem, 2001: 42); «bola de cristal feita de espelhos» (idem, ibidem: 43); «luas ou marés / brilha e reflui» (idem, ibidem: 66); «olho-te pelo reflexo / do vidro» (idem, ibidem: 80) , estes são alguns dos muitos exemplos que poderiam ser dados.
iii Não posso deixar de me referir à frequência com que em Ana Luísa Amaral surgem as abóbadas, os tectos, as varandas, os claustros , as janelas como forma de limite. Estas barreiras arquitectónicas merecem uma leitura atenta, a que voltaremos.