agora vou-te cortar a língua para aprenderes a cantar, adília lopes

domingo, 30 de novembro de 2008

Parábolas do despedaçamento | avulso sobre Joaquim Manuel Magalhães

Recristalização / revisitação temática


O conceito de recristalização, a lenta transformação geológica dos minerais, haurido na esfera da mineralogia, é útil a propósito da obra de Joaquim Manuel Magalhães. Trata-se de uma metáfora operacional não só no que concerne ao cuidado na manutenção/transformação da obra já publicada (basta pensar na rescrita da sua obra em Alguns livros reunidos), mas também na reactualização dos temas e formas de os tratar. O conjunto de poemas publicados em O Independente, entre 21 de Julho de 2000 e 24 de Fevereiro de 2001, constituem uma revisitação de toda a sua obra anterior.

As preocupações com os avanços da tecnologia, com a ausência de uma ética, a crítica à pequenez, às falsas moralidades, a ruptura com a tradição, o acesso das massas ao(s) poder(es), isto é, conteúdos temáticos tratados na obra ensaística de Joaquim Manuel Magalhães são agora transformados / recristalizados em matéria poética

Nestes textos, não é só o outro que é o “quase” que gera frustração, mas tudo quanto o rodeia é matéria de desamor, de frustração. O progresso surge como uma violência. A morte, a doença e a velhice são presenças constantes que inspiram mais do que o terror, o nojo. O passado rural, a infância e a tradição vêem a sua importância amplificada, surgindo mitificados. Apesar de em outros momentos da seu percurso, já ter feito uso da palavra poética enquanto veículo de um discurso ensaístico (ver Um pouco da morte), nunca o fez de modo tão sistemático. Esta revisitação da sua obra anterior ganha contornos mais definidos, se tivermos em conta o espaço mediático onde os poemas são difundidos. Tendo em conta o volume de textos produzidos, Joaquim Manuel Magalhães teria matéria mais do que suficiente para optar pela publicação de mais um livro de poesia. O facto de preferir a publicação no espaço de um jornal é, sem dúvida, uma opção pensada.
Assim, no semanário O Independente, o efémero, que é o quotidiano informativo, dialoga como o poético que se quer intemporal. Joaquim Manuel Magalhães usa um espaço, perfeitamente delimitado numa secção, para revisitar temas que lhe são caros, para ajuizar sobre eles e para reflectir sobre os caminhos da poesia.
Trazer a poesia para o jornal / espaço público é uma provocação que resulta numa aporia. A palavra poética não consegue, ainda assim, deixar as margens.

Sendo a poesia entendida como uma arte aristocrática, destinada a “happy few”, a uma sensibilidade maior, bem formada e culta, trazê-la para um espaço público é disponibilizá-la a todas as sensibilidades – maioritárias ou não, ainda que não haja a veleidade de crer que todos a compreendam. O leitor de poesia procurá-la-á em secção própria. Que por mais pública que seja, está ainda confinada às margens.

Mesmo nesta permissão que nos limita agora
Poema a poema há os que procuram
o poema que não está escrito
nunca e para o qual um parque de ameaçados
caminha.
(Magalhães, 2000:64)

O poeta tem consciência que a inclusão da poesia no jornal é uma “permissão”, e que leitores há a quem o poema não basta, procurarão sempre o que “não está escrito nunca” (Magalhães, 2000:64), mas isso não encontrarão pois o poema só “apanha o real”, porque o é.

mas o poema fala, fala de si
apanha o real porque nele está
quem o escreve, que sou eu
que procuro deixar um sinal
de quanto nos esmagam
a todos os que são nós.
(Magalhães, 2000l:64)

A poesia é um reflexo quase mimético do real, não é um projecto linguístico:

A poesia não é uma obra de si mesma.
Provém de radiações, desse amontoado
Donde retira o glúten, a albumina, a sonda
Transitória e reúne ao sinal mais agredido
A pujança de florações a caminho do enterramento,
Animais arrancados em redor.
(Magalhães, 2000l:64)

A poesia vai além da reflexão/construção em torno do signo linguístico, vai até ao imo do real, não ao real estético, mas ao real onde se sofre, onde se sente a transitoriedade da vida, o sofrimento, onde se sente o apelo trágico.
Ainda que involuntariamente, Joaquim Manuel Magalhães assume-se como educador das massas. A publicação de uma arte sociológica em forma de arte poética é a tradução prática de um desejo latente na obra ensaística, é o desenhar das linhas de força daquilo que deve ser a poesia. A poesia abandona a esfera do privado para fazer parte de um produto de consumo e desgaste rápido: o jornal. Mas mesmo aí não consegue ainda contaminar as outras secções do jornal, é a penas mais uma rubrica com um público bem definido.
Esta poesia, partilha um projecto comum, com todas as outras poéticas posteriores à Poesia 61 e à PoEx: regressar ao real.

“Voltar ao real. Sim. Como o disse
quando outros se refugiavam
na linguagem da linguagem .”
(Magalhães, 2000:56)

Há uma recusa e um repúdio imenso face às poéticas de 60. Genericamente, esta poesia procurava “sentir o «peso das palavras», o qual era sustentado pelo que Carlos de Oliveira há-de designar por «micro-rigor», que seria o suporte da própria construção do poema” (Guimarães, 1999:124). Em Joaquim Manuel Magalhães há um sistemático repúdio por esta forma de entender a res poética. Gastão Cruz, um representante legítimo da Poesia 61, diz que “Há no poema um sentido violento da forma, que é a marca da imaginação” (Cruz: 1999,337). Esta valorização da forma e a “convocação aparentemente arbitrária de signos” (Cruz: 1999,337) é totalmente contrária ao regresso ao real desejado por Joaquim Manuel Magalhães.

Mas nunca, isso não,
O abstracto da referencialidade
Só a si, como retardados teóricos
Ainda hoje manejam.
(Magalhães, 2000x:56)

JMM aproveita o espaço público que é o jornal para expor as suas ideias, para formular juízos de valor, para impor a sua visão do mundo.

Detesto o esteticismo, os que seguem
a literatura, quero um corpo habitual
adormecido na madrugada. Basta-me
a imperceptível felicidade diária
enquanto por dentro me corroem.
(Magalhães, 2000x:57)


Esta a “imperceptível felicidade diária” é tão somente o desejado real.


E quando ouço falar destes da escrita
Na sua desde sempre esquadria de promoções
Olho para o João e rio-me. Assim,
O que indica e ilumina a poesia?
Se desta palavra posso falar. Se
Ela o quer. Não há-de ser
Nada, dizemo-nos. E
Continuamos a conversar.
(Magalhães, 2000x:57)


Essa poesia voltada para as experiências linguísticas é o “Nada” e é conotada com lobbys literários – “esquadria de promoções” -, dos quais nem Joaquim Manuel Magalhães nem João Miguel Fernandes Jorge, fazem parte. A poesia de Joaquim Manuel Magalhães inscreve-se na movimentação pós-modernista. Este “projecto” (se assim podemos dizer), não persegue uma visão do mundo, mas pretende regressar ao real pela atenção que começa a prestar ao quotidiano, ao naturalmente vivido e experimentado, à sua inevitável banalização. Isto ia ao encontro de alguns ensinamentos que T.S. Eliot propusera e que a poesia portuguesa entretanto acolhera”
(Guimarães, 1999:130)